texto crítico #05, 2020

Letícia, Monte Bonito, 04 de Julia Regis

Festival Metrô Universitário – Sessão 24/9: Imagens Privadas

por Victoria Tuler

Sob circunstâncias inesperadas, 2020 se desenrolou como um período de ensimesmação e recolhimento. Tanto entre os que usufruíram do privilégio de se isolar completamente, quanto para aqueles que precisaram manter integral ou parcialmente suas rotinas, foi um ano que exigiu de todos nós a habilidade de assimilar e interpretar as dores e mudanças do mundo exterior a partir de nossos próprios casulos. 

Na 4ª edição do Metrô, esse desafio existencial atípico parece pautar a seleção dos filmes da Sessão 5, intitulada Imagens Privadas. Nos quatro curtas-metragens que integram o bloco, a ambiência do confinamento e a estética embebida no cinema de imagem de absorção agem como pontos de ignição em suas proposições narrativas. 

Esse conceito é aplicado de maneira quase literal em Dinossaurite, de Rafael de Campos. Realizada em 2019, a obra ganha ares quase proféticos quando analisada no contexto atual. O enredo segue a escalada de descontrole e delírio em uma pequena pensão, depois que seus moradores descobrem – via WhatsApp, é claro – a existência de uma suposta epidemia que transforma pessoas em uma espécie de monstro carnívoro. Com uma boa dose de ironia e acidez, a dramaturgia guia o espectador por uma jornada delineada pela crítica à era das fake news e pós-verdades. A escolha de filmar em câmera única causa algum desconforto aos olhos em diversas cenas, mas, em contrapartida, reforça o humor satírico ao invocar a lembrança do estilo found footage, que ganhou força no terror comercial nos últimos vinte anos. 

É também na opção deliberada pelo setup de uma única câmera que dois outros títulos da sessão, Não acredito no inferno, de André Berzagui, e Não é mesmo, Flavinha?, dirigido por Lara Carvalho, constroem suas identidades imagéticas. O primeiro, partindo de um lugar íntimo o bastante para soar confessional, mescla cenas da cidade de Pelotas com a narração de uma avó que conta sua saga familiar ao neto – originando um discurso semiótico que dialoga, em vários níveis, com News From Home, de Chantal Akerman. Já Não é mesmo, Flavinha? atua como um registro documental interessante da sensação de incerteza, insegurança e abandono do primeiro mês de isolamento social em decorrência da pandemia de Covid-19.

Embora também transcorra como expressão da privacidade oriunda de um universo particular, Letícia, Monte Bonito, 04, de Julia Regis, segue um caminho diferente das obras que o precedem nesse bloco. Com a potência que a representação verossímil e comprometida de existências sáficas pode ter, a história de duas adolescentes que se conectam ao longo de uma tarde de verão impõe ao espectador um ritmo mais tranquilo e menos ansioso em relação às reflexões que foram propostas até aqui. O ar de nostalgia que permeia o curta-metragem – seja na delicadeza da paixão adolescente muito bem sintetizada pelo filme, seja na direção de arte repleta de influências do início dos anos 2000 – cresce como um sopro esperançoso. Após tantas digressões sobre a clausura, Letícia atua como um lembrete de que o mundo ainda existe lá fora, e nos pertence.