texto crítico #08, 2021

Mutilando a imagem

por Giuliano Maccio

Aquele que Criou o Cordeiro Também te Criou? (2021), de
João Roberto

A pandemia intensificou consideravelmente a produção de obras audiovisuais com equipes totalmente reduzidas que utilizam-se de imagens de arquivo e/ou imagens de desktop e/ou filmagens em espaços mais intimistas dos autores, como suas casas ou apartamentos. Percebe-se também em grande parte dessas produções uma tentativa em fugir de certos lugares comuns e temáticas quase unânimes para quem respeitou o processo de isolamento, como a solidão, o ócio e a falta de perspectiva. Até então, no próprio festival, já nos deparamos com interessantíssimas experimentações e maneiras de encarar este contexto, mas tenho de admitir que nem todos me fisgaram com a mesma intensidade de Aquele que criou o cordeiro também te criou? (2021) de João Roberto; um filme que não só traz consigo muitas dessas características ou mesmo limitações intrínsecas aos “filmes pandêmicos”, como as utiliza a seu favor.

Logo no primeiro plano de Aquele que criou o cordeiro também te criou?, o realizador João Roberto antecipa o conceito explorado de diversas maneiras durante seus quatro preciosos minutos de duração. Tomás, interpretado pelo próprio João, é revelado, em pé, no reflexo de um espelho. Curiosamente, o enquadramento estabelecido através de suas molduras exibe o personagem apenas do pescoço para baixo, até os joelhos, cuidadosamente mutilando parte de suas pernas e cabeça. Por meio de um plano fixo, sem diálogos e com pouco menos de dez segundos de duração, o autor evidencia as regras (ou falta delas) para que possamos embarcar em seu jogo, justamente porque logo a partir desse momento somos constantemente provocados a abordar corpos, textos, imagens e sons que possuem “pedaços faltando”. O filme nos coage a completar esses elementos que, em diversos momentos, são apenas sugeridos, alcançado o grande feito de construir a relação entre obra e público através de questões que estão muito além dos limites do quadro. Pode-se dizer que encontramos em Aquele que criou o cordeiro também te criou? o que o pesquisador Cristian Borges aponta, em referência ao crítico Serge Daney, como “erotização dos cantos do quadro”[1], justamente pelo poder de João Roberto em definir o que estamos autorizados a ver e o que nos é proibido.

Depois dessa sagaz “apresentação”, o filme avança com uma série de raccords de olhares de Tomás e uma cantiga de ninar tão arrepiante quanto as músicas tocadas pelo Vinil Verde (2004) de Kleber Mendonça Filho. A cantiga em Aquele que criou o cordeiro também te criou? repete: “O homem vê o prato, ele não está farto; o homem vê a moça, espero que ele ouça; o homem vê o caixão, esqueça tudo então”, que, juntamente aos raccords, referem-se ao efeito proposto por Lev Kuleshov no começo do século XX. Kuleshov defendia a ideia de que, através da montagem, é possível mudar a reação do público perante a mesma imagem. O exemplo apresentado pelo soviético era de um rosto de expressão neutra contraposto à três diferentes elementos, justamente um prato de sopa, uma moça deitada e uma criança em um caixão. Entretanto, no filme de João Roberto, os contra-planos relativos ao rosto de Tomás apresentam informações que estão quase sempre “mutiladas”, como mensagens que brotam na tela do computador do personagem, das quais só conseguimos captar algumas palavras, sendo muitas delas incompletas, o que nos convida a decifrar o teor da frase. Quando são mensagens completas, elas aparecem de maneira desconexa e nos fazem indagar qual o teor da conversa. O mesmo acontece quando as texturas da tela do computador de Tomás dão lugar a pernas vestidas com meia arrastão das quais (pasmem!) não sabemos a que corpo pertencem e que em seguida se transformam em uma foto tão aproximada ao ponto que se torna impossível reconhecer e distinguir as pernas ou a meia, tornando-as apenas uma nova textura na tela, tanto da câmera, quanto do computador.

Em dada altura do filme, João Roberto constrói um simples momento que me causou calafrios em todas as visitas que fiz ao curta-metragem. A lógica já estabelecida de planos do rosto de Tomás e de contraplanos que indicam o que ele vê dá lugar a dois planos em sequência: Tomás de costas, usando seu computador e emoldurado pela entrada do cômodo, como se algo ou alguém estivesse espiando-o, e, no plano seguinte, Tomás olhando diretamente para a lente da câmera, porém, dessa vez com o pescoço virado, como se pela primeira vez estivesse fazendo um esforço consciente em conhecer quem de fato lhe vigia: nós. Assim, ele rompe as texturas na imagem que até então nos distanciavam e nos mantinham confortáveis, forçando-nos a reconhecer nosso fetiche pela imagem, nosso desejo incessante em saber o que virá a seguir e a imaginar o que nos foi proibido. É como se Tomás repetisse a mensagem que recebera momentos atrás em seu computador: “Quer ver?” e se você chegou até aqui, é porque provavelmente quis.


[1] Em busca de um cinema em fuga, São Paulo, Perspectiva, 2019, p. 143.