texto crítico #11, 2021

Revelar e ocultar, fabulações sobre o gesto

SESSÃO 5

por Manu Zilveti

Fazer um filme é de certo modo uma escolha. Escolhe-se aquilo que será mostrado e aquilo que ficará oculto. Jamais saberemos quantos quilômetros de película e horas de filmagem sobraram para fora dos filmes, e mais imensurável ainda é toda a infinidade de mundo que foi escolhida não se registrar. Ainda sim, não daremos conta também de tudo que foi escolhido mostrar, que foi exposto e publicado. Saberemos apenas de partes, pedaços de vida que irão cruzar nossos caminhos através de imagens e sons. Assistir um filme em parte é isso, conhecer um pedaço de algo, ou alguém, que alguém, ou algo, decidiu mostrar ao mundo e nós, então, decidimos ver.

Em Conversa com Meu Avô (2020), Alina Chiaradia escolhe apresentar em um filme de plano único o fragmento de uma tarde de pesca entre ela e seu avô. É um filme de práticas mínimas, em que a imagem é construída a partir de uma câmera operada pelas mãos de Alina, que acompanha pequenos acontecimentos, seu avô pesca um peixe, liberta-o do anzol e o atira em uma outra faixa d’água. A ausência de cortes no filme suspende a breve temporalidade de três minutos da obra e realoca quem a assiste para uma experiência livre de recursos alteradores da velocidade dos acontecimentos, esta imagem que termina e se inicia sem maiores explicações é tudo que temos. Esta parcela de vida, este breve momento de partilha, esta única peça de mistério e segredo, nos revela uma imagem, que é o suficiente para formar a totalidade do filme.

Curiosamente Inocentes (Pedro Ferreira, 2021) opera em um procedimento oposto, sua infinidade de peças e pistas não se ordenam com o fim de criar uma imagem. O filme ativa o encantamento a partir de um exercício fabulativo. Pedro não sabe ao certo para onde Felipe e Filipe foram, mas ele imagina. A partir das imagens que ele registrara ao longo dos anos de si mesmo e dos dois meninos desaparecidos, o rapaz teoriza para onde os amigos fugiram agora que estamos no fim do mundo. Mesmo informando as espectadoras que as imagens são arquivos dos dois rapazes que foram cedidas pelas famílias, o modo com que o filme as modula pela narração faz com que a imaginação de quem assiste ao filme desafie os fatos. A impressão em alguns momentos é a de que vemos filmagens feitas no presente, neste lugar misterioso da fuga dos dois.

Este espaço fabricado pela elaboração de Pedro é o fio condutor de sua narrativa, que divaga em informações sobre os meninos, mas sem jamais revelar por completo quem eles são. Tudo que sabemos deles está contaminado pela perspectiva de Pedro e seu olhar profundamente íntimo em relação aos amigos. Esta implicação de uma percepção de uma pessoa de outra também se repete na imagem, em que por vezes os grãos da película são atravessados por ruídos vermelhos e digitais. O filme escolhe muitas vezes cobrir os rostos de outras pessoas, aprofundando a imersão no trio. Nos registros que filmam Felipe e Filipe há uma escolha pelo enquadramento fechado em seus rostos e uma movimentação de câmera trêmula, que apanha apenas detalhes, fracções dos dois meninos. Esse jogo cinematográfico de mostrar e esconder cria uma imagem fractal do universo dos três.

Este sentimento caleidoscópico de tramar imagens que refletem entre si, gerando assim novas imagens, é continuado em à beira do planeta mainha soprou a gente (Bruna Barros e Bruna Castro, 2020). O curta é uma série de retratos e autorretratos que Bruna e Bruna constroem delas mesmas. As duas se filmam em uma colagem de diversos modos de registros, em que se misturam imagens tremidas no escuro de um carro, entrevistas com câmera fixa e fundo sólido, vídeos de celulares e imagens das cidades em que as duas habitam. As apresentações vão e voltam de momentos corriqueiros do cotidiano para relatos e momentos mais íntimos. Como devaneios de memórias que navegam sem um rumo preciso pela mente. É a partir desses fragmentos que o filme constrói suas personagens e as relações que elas traçam com o mundo em seu entorno, principalmente da mãe de uma delas, que não por acaso tem mais dificuldade de amar certas partes da filha do que outras. O filme une essa coletânea de imagens através dos gestos: da boca que desenha o a de namorada bem aberto, de uma pinta nova que surge, do medo das incertezas que o futuro propõe e do desejo de ficar mais um dia com as meninas, porque logo elas irão embora. Em à beira…, as imagens não têm começo ou fim, são continuidade dos gestos das Brunas e dos caminhos que seus corpos escolhem traçar.

Sintomático (Marina Pessato, 2021) é o primeiro filme da sessão a sair do campo do particular, do próximo e do íntimo. Apesar da perspectiva em primeira pessoa, o filme fala da relação de Marina com um território mais amplo: a narradora tenta, com sua experiência pessoal, dar conta do espaço geopolítico de sua cidade natal, Ibirubá, interior do Rio Grande do Sul. O curta é o filme da sessão que menos nos informa quem é sua personagem/narradora, no entanto, é o que mais parece tentar totalizar o mundo através de seu olhar. Há uma recusa da personagem em se entender dentro do pacto conservador que cidade tem com sua história. Num gesto de denúncia, ela expõe as incoerências presentes no frágil tecido de fábulas nas quais sua cidade foi construída. Essa dicotomia é sustentada pela tese de que há uma verdade inconveniente da qual a narradora detém conhecimento, mas que vem sido sistematicamente apagada nos espaços em que ela teve sua formação, em particular sua escola. Marina se posiciona como alguém que embora não tenha necessariamente sofrido diretamente algumas destas opressões, poderia tê-las sofrido por não se encaixar nos moldes sociais privilegiados por essa sociedade. O filme carece talvez de uma complexificação dessas questões, há uma ausência na narrativa das fissuras que existem neste pensamento indubitável. A narrativa tenta com os cacos de informações criar um ladrilho. Escapa do olhar fílmico a parte, a lasca, o pedaço de história, dentro dessa perspectiva particular que se enlaça e se implica com a cidade e aqueles que a habitam.

Encerra a sessão o filme Quem Saiu Para Entrega? (Evaldo Cevinscki Neto, Leonardo Machado e Paula Roberta de Souza, 2021), que abre suas imagens dentro da perspectiva do consumidor, através da mistura de gravações de tela de celular dentro de aplicativos de comida e filmagens de embalagens de delivery sendo abertas. Ainda no início do filme, o ponto de vista é então invertido e sai do lugar daquele que consome, para aquele que entrega. A janela de exibição da obra é vertical, emulando um dispositivo móvel, o que é reforçado pela fabricação de interferências ocasionais de sons de notificação e motions que simulam ligações e avisos dos aplicativos. Essa perspectiva, que é emprestada aos entregadores mas devolvida para os realizadores do filme no final do curta, cria uma relação incontornável da obra com seus personagens. Mas a relação hierárquica é reiterada por estas intervenções criadas na finalização. Essa transparência de construir na pós-produção as interferências vai alisando e acobertando possíveis fissuras e problemas inconciliáveis. Um momento particular da obra sintetiza este sentimento, quando, a fim de ocultar a identidade do restaurante que o entregador denuncia, é simulada uma perda de conexão da internet, borrando o logo do estabelecimento e distorcendo a voz do personagem que filma. Esse artifício, mais do que encobrir algo que desejava ser mostrado, falseia este encobrimento com uma roupagem. Há um jogo duplo em cena, de mostrar, omitir e esconder o próprio ocultamento. A questão aqui seria talvez a de emancipar essas partes (as filmagens realizadas pelos entregadores) sem torná-las reféns da tentativa de um discurso do todo. Neste caso, o todo poderia ser construído a partir da colisão de destruição das partes.