texto crítico #17, 2021

De ombros dados

Meninos Rimam (2021), de Lucas Nunes

por Felipe Feitosa

A imagem de uma câmera amadora abre o curta. O plano vai percorrendo os itens de um quarto até que encontra Arthur, o próprio cinegrafista, através de um reflexo no espelho. Corta. Saímos da câmera diegética e Arhtur (Gabriel Almeida) continua a lidar com a própria imagem refletida. Em um primeiro plano, o jovem experimenta um brinco de pressão e, sem esboçar muita reação, troca o brinco de orelha. A decupagem decide nos aproximar ainda mais de Arthur e, então, a objetiva acaba registrando um sorriso singelo que escapa na feição do personagem. Quando uma voz de fora do quadro o chama, ele retira os brincos com pressa e os guarda.

É na intimidade desta figura que nós começamos a entender os caminhos que Meninos Rimam irá percorrer: os modos como as aspirações de um jovem se veem cerceadas pelo que é completamente externo – isto por meio de uma certa ideia de subjetividade que a pequena filmadora de Arthur traduz, ou por essa decupagem que se revela milimétrica na forma como pensa as ações da cena. Trata-se de um recorte de personagens que estão inseridos dentro de um universo periférico e são embalados por uma “lógica” de masculinidade. Alexandre (Marcos Vinicius Maciel) nos é apresentado em uma pista de skate, ouvindo rap. Por uma montagem dinâmica e pela forma como o ator o interpreta, começamos a compreender os contrastes entre os dois meninos.

Enquanto Arthur é um personagem de interiores, de voz baixa e de postura retraída, Alexandre é mais solto, ocupa os cenários externos e projeta sua voz, quando rima, através de um microfone. Ambos compartilham os mesmos lugares. São amigos por serem da mesma escola, bairro, cidade, ou por gostarem de coisas parecidas. De certa forma, isso não importa muito já que as escolhas de Lucas Nunes, diretor do filme, parecem estar mais preocupadas com os gestos, com os olhares e com os corpos destes jovens. A todo momento uma manifestação de virilidade encontra ambos os garotos e o jeito como a obra discursa contra toda esta potência masculina é intensa.

Contudo, intensidade não é antônimo de sutileza. Todo o filme é calmo e sereno, mas é enfático, resguardando a timidez apenas aos personagens. As vozes de figuras que estão presentes na vida dos jovens estão sempre ululando esse “ideal” juvenil e antiquado do homem que precisa ficar com várias garotas. Em determinado momento isso aflige Arthur, que pede ajuda a Alexandre. O diálogo deles se desenrola rumo a uma frase marcante: “Tá falando da gente se beijar? Tá maluco?”. A montagem da cena aborda tudo por meio da desconexão, os planos não colam com as falas. Desliga-se quem estes personagens são do que eles proferem. Enquanto Alexandre e Arthur tentam esconder o desejo homoafetivo por entre os desvios da fala, a câmera procura entender o sentimento nos gestos, nos olhares e em como eles agem nesse momento. É um contraste entre o que se quer dizer e o que realmente se expressa.

Até que os lábios juntam tudo. A montagem acalma, a objetiva se esforça para enquadrar ambos em um único plano, já que, ao estarem lado a lado – de ombros colados –, uma clara distância se instaura entre os dois. Mas, apesar dos desvios truculentos, dá-se o beijo e, assim como acontece de forma escondida, permanece até o fim do curta. Todos em Meninos Rimam estão presos à incomunicabilidade, mas Nunes continua compartilhando esses sentimentos através da linguagem. É marcante quando vemos Alexandre tirar a camiseta pela lente da filmadora de Arthur, porque sabemos que isso está discursando em certa medida sobre a própria natureza do olhar de quem filma. Também é significativo o jeito que o rapper passa a se comportar perto do amigo – mesmo que, a priori, transmita uma ideia de força para o espectador, é na presença de um possível amor proibido que a hesitação e o olhar perdido substituem seu modo de agir.

Em outro momento, novamente lado a lado, ambos os personagens fumam em uma laje. Alexandre, em um plano composto, se aproxima do parceiro. Fica claro as vontades que ele tem de se achegar ainda mais. Talvez seja o desejo de repetir o beijo, mas quando alguém surge fora do quadro tudo muda. A voz distante é motivo para montagem trocar de quadro e para a fotografia quebrar o eixo. Ainda em um plano composto, mas agora de trás dos personagens, Alexandre se afasta de Arhur. É quando aquilo que é externo a eles se insere na intimidade dos meninos, que a homoafetividade entre os dois sofre censuras.

É talvez pelo medo, pela forma como uma masculinidade tóxica se insere naquele meio e pelo jeito que os próprios personagens replicam essas grosserias, que um romance adolescente se vê impossibilitado de acontecer. Meninos Rimam é um filme simples, mas potente, consegue discursar de forma inteligente sobre questões de identidade e de forma econômica sobre entornos tóxicos e, principalmente, sobre os sentimentos que nos embalam. E, nesse jeito sutil de lidar com tudo, o enredo não deixa de nos entregar um leve amargor.

Esse gostinho de que no fim, mesmo que estes personagens mantenham a amizade e estejam avançando com seus sonhos (Alexandre com o rap e Arthur com o audiovisual), as emoções que eles guardam não vão sair dos espaços interiores. Seja apenas no âmbito dos sentimentos, seja dentro das quatro paredes de um quarto, ambos os garotos estão limitados no amor. Limitados, quando o entorno se faz presente, a andar de ombros dados.