texto crítico #01 – 2020

A Morte Branca do Feiticeiro Negro de Rodrigo Ribeiro

Festival Metrô Universitário – Sessão 22/9: Imagens Domésticas

por Davi Braga

Pouco a pouco, os efeitos de um isolamento social que já dura cerca de sete meses começam a refletir na produção de filmes, em especial na realização independente, cuja produção pode se fazer de maneira muito imediata, despojada da reunião presencial de grandes forças coletivas para se concretizar. O olhar para a situação pandêmica que o mundo atravessa hoje, tal como seus efeitos na realização cinematográfica, é visível na maioria dos filmes que abrem a 4ª Edição do Festival Metrô Universitário, como por exemplo, Exocontrole (2020),de Keyme Gomes e Thais Barros, e Um Passeio por Campinas, dia 29 de abril de 2020 (2020), de André Quevedo Pacheco.

No primeiro, a utilização de um recurso de mise-en-scène que poderia de algum modo soar muito óbvio nesse momento, o desktop movie, nega as convenções de se limitar totalmente à tela do computador. Menos que um espaço que pretende centralizar tudo e a partir daí se impor desafios de encenação – e, consequentemente, se atrapalhar no processo, como é o caso de Searching (2018), último grande sucesso a se utilizar do recurso–aqui o ambiente virtual funciona como um espaço de rápidos estímulos visuais, que logo situam o espectador não apenas no tempo (o período de isolamento em que as comunicações estão limitadas ao uso das redes), mas também dentro desse ambiente ficcional do filme: o de uma misteriosa missão a ser cumprida, misturando realidade e fantasia, propondo um olhar que não é passivo à situação da pandemia, mas que acusa a ineficácia e negacionismo estatal ao lidar com ela. Ao final do filme, a apropriação de imagens que datam do começo da situação instiga a especulação por parte do espectador, que se questiona quão diferente tudo poderia ter sido fosse outra a atitude adotada, ainda que toda essa possibilidade soe utópica demais.

Também carregado de um ar crítico, Passeio se submete a um exercício amplo de observação do chamado “novo normal” trazido pela proliferação do coronavirus. Debruçando-se sobre um registro feito em um passeio de carro, Pacheco manipula a imagem ao congelar os quadros, voltar e avançar o vídeo, procurando sempre o timing perfeito para traçar um comentário mais incisivo sobre as diferentes posturas adotadas nas ruas pelos cidadãos, acompanhado de um espontâneo comentário em off de uma mulher, que quase sempre se adequa ao que é filmado por ele. Ainda que o dispositivo de manipulação soe repetitivo em alguns momentos, em especial quando assume um tom mais abstrato em relação ao que é visto, o filme realiza de maneira competente a intervenção em seu material, propondo um jogo que vai do diário ao comentário, da observação à intervenção, da simples captura direta do evento à elaboração de um comentário ácido.

Já o relato de resistência proposto por Rodrigo Ribeiro em A Morte Branca do Feiticeiro Negro (2020)é o trabalho que melhor categoriza o aproveitamento de imagens de arquivo das obras desta sessão. Seus 10 minutos se prestam a tornar visual a dura experiência imersiva da leitura de uma carta de suicídio redigida por um escravo em 1861, em Salvador. Alternando entre imagens do passado que capturam diretamente essa situação escravocrata e registros atuais, o filme trata de ressaltar a atemporalidade ali presente: se o discurso “permanece ocando no surdo vazio do tempo” é mesmo por uma manutenção, de algum modo, das forças à época vigentes, que podem não se dar explícita, mas definitivamente estão implicitamente entranhadas na sociedade. A crença é toda depositada no poder tanto do texto quanto da imagem, acompanhados de uma sonoplastia que se faz incômoda, tratando de evidenciar um desconforto mais do que necessário à situação. No quadro final, sua “decupagem da imagem” remete ao que Godard fez em Je vous salue, Sarajevo (1993), atribuindo ao ato um elevado grau de simbolismo e resistência, concretizando uma obra de importância singular no mundo contemporâneo.

Em Vídeo Engolido (2020),de Isa Melo, é possível enxergar, também, o que seriam reflexos da situação de isolamento social. Em uma abordagem que parece ser motivada pela situação ociosa em que vivemos, configura-se uma experiência estética que, como anuncia o título, é cara ao vídeo: saturação, ruídos imagéticos e sonoros, colagens e experimentações. Melo parte desses elementos para criar algo surrealista, num curta que se abstém de tentar relacionar o que parece ser uma espécie de tema principal, a fome, a qualquer outro elemento que surge. Tão surreal quanto é o texto narrado em voz over, que, se de algum modo se relaciona com o que vemos em tela, carrega também uma falta de lógica inata, que é a força motriz do filme. A cada vez mais desfocada imagem da boca que ocupa o quadro, e que remete às origens do cinema com a experimentação em The Big Swallow (1901), nos encaminha a um encerramento abrupto, do qual emerge um convite para um replay do curta que se faz sucessivamente, buscando cada vez mais fascínio pela experiência proposta, sem a menor pretensão de dar sentido à coisa, mas apenas de contemplá-la.

Finalmente, Amamentando Morcegos (2019) é o filme em que a lógica “doméstica” das imagens parece ser levada ao extremo. Partindo de gravações caseiras que um menino deve fazer para um dever de casa, as minúcias de sua família são expostas de maneira indireta, usando da inocência dele para irem se revelando pouco a pouco.

Propondo um retrato que já se vê quase como padrão no panorama do cinema brasileiro contemporâneo – o cotidiano da família burguesa acompanhada de uma empregada – o ponto de destaque do filme é se diferenciar dos outros que já percorreram esse caminho ao apostar não no drama individualizado da funcionária doméstica e as consequentes injustiças que sofre, mas em revelar tudo que abrange as questões dessa família através de uma mise-en-scène que se faz a partir da perspectiva do filho caçula, que ao mesmo tempo em que tudo vê, nada vê, muito por conta de sua inocência, deixando para o espectador amarrar as pontas de uma trama que, se por um lado pode ser previsível, configura um exercício interessante de renovação em sua encenação.

A sessão de abertura do Festival, ao tratar dessas “imagens domésticas”, dá conta de traçar um pequeno panorama sobre a produção independente brasileira em função da pandemia da Covid-19, evidenciando como cada tipo de produção vem lidando de maneira singular com a vida atual, desafiando as barreiras do isolamento, da limitação, e propondo uma arte não só criativa, mas também necessária.