texto crítico #04, 2020

Pátria de Lívia Costa e Sunny Maia

Festival Metrô Universitário – Sessão 24/9: Obsolescência

por Helena Frade

As coisas também querem. Ao assistir Ratoeira, curta-metragem que abre a Mostra 4, de nome Obsolescência, pensei nessa frase, que é o título de um trabalho da poeta/escritora Maria Isabel Iorio. Pego de empréstimo esta passagem porque no filme de Carlos Adelino, as coisas parecem querer. Nos é apresentado o personagem Macgyver, um técnico que trabalha com o reparo de aparelhos eletrônicos. Há de se imaginar que o cenário da oficina é povoado por um monte destes itens, boa parte esquecidos por seus donos, amontoados em prateleiras. Neste espaço, presenciamos uma espécie de simbiose entre sujeito e objeto(s), na medida em que o protagonista traça um forte envolvimento emocional com o entorno. 

A música é um elemento chave, que pontua o filme. Talvez ela seja, inclusive, uma personagem. Quando Macgyver revisita uma música cantada por ele em um momento do passado, os objetos ao redor se ouriçam e ganham vida. Assanhados, os diversos aparelhos eletrônicos parecem dançar em descompasso à canção. Neste sentido, a música se apresenta como um dispositivo que cumpre a função de acionar. Os objetos recebem as entidades musicais e entram na gira, aparentemente sem pedir licença. Quando digo que as coisas querem, me refiro aos objetos, mas não só. Não importa tanto a materialidade do objeto em si. A grande questão parece ser o que ele permite acessar, literal e metaforicamente. Nessa trama, a música talvez seja a própria ratoeira de captura da memória. No entanto, nem sempre abocanhamos a presa, nem sempre a isca é mordida. 

Essa forte presença musical também é notória no último filme da sessão, o curta-metragem Mamãe Tem Um Demônio. À sua maneira, aqui também vemos elementos de um passado serem acionados a partir de um objeto: o livro de Tete Barilove, uma diva pop dos anos 1990, que se suicidou sem deixar vestígio do corpo. Beni, uma grande fã (e não por menos), encontra este livro no ano de 2020. A partir daí, a magia se põe em evidência. Quando Beni lê um texto “enigmático” contido em uma dessas páginas, sua fala funciona como controle remoto ou ativador eletromagnético da TV de seu quarto. O aparelho com vida própria começa a exibir um clipe em que Tete canta “Vestido Azul”, pouco antes de se corporificar divinamente ou, melhor dizendo, diabolicamente, na companhia da protagonista.   

Em poucas palavras: uma mãe obsessiva, uma filha mimada, um assassino bizarro, uma demônia cantora ou uma cantora demônia. O humor é a navalha e o corte preciso da interrogação: quem é você? Fica no ar a pergunta, depois que a figura endiabrada aparentemente salva o rolê das outras duas figuras femininas. E para quem foi criança no Brasil dos anos 1990, é bem provável que suspeite que a Xuxa possa ter sido uma referência para as escolhas sonoras dos créditos finais. Um vídeo que se popularizou no Youtube entre pessoas dessa geração é a captura reversa de um disco da “rainha dos baixinhos”, em que afirmam ser possível ouvir “frases satânicas ao contrário”, conforme sugere o título do vídeo. Ainda que haja um paralelo com o passado e com uma série de referências (nada) obsoletas, Mamãe Tem Um Demônio nos apresenta um thriller envolvente, com características narrativas e audiovisuais atualizadas.

Outro filme da sessão que carrega em seu âmago a ideia de obsolescência é o curta-metragem Pátria. A partir de imagens já existentes e arquivos históricos, vemos um jogo de experimentos com a montagem e a edição, que se materializa na tela em forma de crítica ao cenário político (atual e passado) ultraconservador do Brasil. O título, as formulações discursivas e a estética de um filme que simula o efeito de VHS são escolhas que indiciam e reforçam a deflagração de algo que é antiquado e anacrônico. Existe um trâmite especialmente interessante entre as palavras “nacionalismo”, “pai”, “paternalismo” e “patriarcado”. O discurso apresentado evidencia a consciência de que, como dito pela narradora, “os símbolos têm poder por serem muito repetidos, mas os símbolos mudam ou são ressignificados”. De certa maneira, o filme se propõe a fazer esta mediação, na medida em que rasura, intervém com rabiscos e arranha a cara dos presidentes, digo, as fotografias de figuras públicas putrefatas (no sentido amplo da palavra).  

Imaginemos agora outro cenário. Uma casa moderna de classe média, composta por uma decoração recheada de figuras, memes e iconografias que representam o arquétipo de parte do repertório imagético da juventude atual. É com este panorama que se inicia o filme Eu Tinha Alguma Coisa Pra Te Falar. A personagem Fernanda é apresentada como uma pessoa de gostos pessoais excêntricos, que vão desde colocar o travesseiro na geladeira a guardar a escova de dente junto aos talheres. Sua namorada, com quem divide a residência, encasqueta especificamente com o fato de a companheira deixar o bule de chá no meio dos calçados. Fernanda, sem resposta, sai à procura de “um argumento bem argumentado”, como diz a protagonista. Na portaria do prédio em que moram, o enquadramento evidencia ao fundo da portaria uma cópia da obra A Persistência da Memória (1931), de Salvador Dali. A escolha pela famosa pintura surrealista dos relógios derretidos, decerto, não é gratuita. Esse ícone, produzido na primeira metade do século passado, logo remete a uma série de metáforas mais ou menos superficiais, relacionadas à falta de controle desse tempo escorrido e ao aspecto de finitude que configura a própria vida.

No subtexto, está a leitura crítica da mercantilização dos modos de ser e pensar. O capitalismo neoliberal aglutina e transforma (quase) tudo em lucro, sendo capaz de vender até a mais genuína subjetividade psíquica. A equação é simples: ao capitalizar o lucro, se socializa o prejuízo. Assim como todo e qualquer produto desse sistema falho, um argumento se torna mercadoria e, logo, obsoleto. O filme deixa, de forma piegas e romântica, a lição final de que despossuir e se desarmar de verdades prontas pode ser potencialmente mais interessante.  

Em uma frase, a sessão 4 parece sustentar a necessidade de atirarmos nossos corpos à moção, antes que caiamos em armadilhas e conservemos no formol algumas quinquilharias dispensáveis.