texto crítico #08, 2020

Aréola de Malu Tamietti e André Castro

Festival Metrô Universitário – Sessão 26/9: Projeção

por Lira Kim

Logo nos primeiros filmes da sétima sessão do Festival Metrô Universitário, foi inevitável lembrar do comentário que o autor de Insustentável Leveza Do Ser tece sobre a gênese de suas personagens. Para Kundera, eles “não nascem de um corpo materno como os seres vivos, mas de uma situação, uma frase, uma metáfora que contém em embrião uma possibilidade humana fundamental (…) sobre a qual nada de essencial ainda foi dito.” 

O tema da gestação de novas possibilidades é literal e central em Aréola, o primeiro filme da Linha Projeção. A entrevistadora e diretora também é uma das entrevistadas nesse documentário em primeira pessoa no qual Malu Tamietti registra os momentos que antecedem e se seguem após o nascimento de sua filha Yolanda. O curta também registra o re-nascimento das mulheres que a cercam, que agora se tornam avó e bisa, enquanto a própria diretora se transforma em mãe e, sem, por isso, deixar de sonhar. A trilha do filme, composta por ninguém mais ninguém menos que o rapper Djonga, companheiro da diretora, traduz em versos a força das imagens que retratam 4 gerações de mulheres negras apresentadas no filme, enquanto Malu amamenta a representante mais nova. Vale ressaltar que quando Malu assume a direção da câmera e narra esse processo, desdramatiza-se a maternidade – e as restrições trazidas com ela – e permite-se que a enxerguemos como uma possibilidade dentro do cinema e de sua carreira.

Em Preâmbulo para andar na rua, o artista Oda Rodrigues também fala sobre sua pessoa – mas por intermédio das personagens que aparecem na tela como se acabassem de receber o sopro de vida a partir do poema que é lido em voice-over. Os personagens aqui, assim como os personagens de Milan Kundera, nascem das metáforas e da vista da janela de um escritor. No entanto, no cinema as personagens são materializadas na tela, encarnadas por atores e atrizes que dançam em meio às ruas. Os corpos expressam uma inquietude contida e o deslocamento dentro do espaço urbano pré-pandemia – visto que o filme foi realizado em 2019. É a mesma inquietude presente em vários filmes que assistimos ao longo deste festival: uma insatisfação com o momento presente, que tentamos contornar por meio da arte, seja através da ficcionalização, da sátira, ou no caso deste curta, da poesia.

Em Onde a fé tem nos levado, as personagens não nascem de metáforas, mas são elas mesmas as metáforas, ou alegorias, apresentadas em forma de rubricas de teatro ao início do filme. A cada uma delas, é atribuído um dos quatro elementos conforme sua personalidade e papel dentro da história. Seria até melhor dizer performance, uma vez que a narrativa não é guiada por uma sequência causal de eventos, mas principalmente pelas interações dos atores e atrizes com os cenários que se transformam em palcos, de onde as personagens declamam suas falas ou exploram as possibilidades do corpo em cena. Transitamos de um palco para outro, de uma performance para outra, que no fim, acabam se encontrando por meio da montagem que une os espaços e na incerteza dos tempos atuais – verbalizada nas preces da personagem Rilda. Seja no extravasamento, na introversão, na espiritualidade – representada pela natureza onipresente no filme – cada personagem lida com seus questionamentos à sua maneira, ao mesmo tempo que buscam a realização das suas vontades e desejos. 

Assim, mais do que em outras sessões, esta fala sobre o audiovisual como um terreno não apenas de projeção, mas como de materialização das nossas próprias possibilidades, sejam elas individuais ou coletivas. Não se trata apenas de imaginar o futuro, mas também de reinventar o presente. É por isso que mesmo durante a pandemia, continuamos a assistir e a fazer filmes – e a escrever sobre eles. Ainda somos os mesmos, nas memórias do passado fala sobre essas reminiscências de uma vida pré-pandemia e a importância de resgatá-las. A voice-over interage constantemente com os personagens que a câmera capta durante o registro familiar, e até demora um pouco para perceber que na verdade o interlocutor é quem assiste. O locutor também se refere a uma Santa Nostalgia e reza: “fortaleça nossa fé no amanhã e que as flores de um passado próspero brotem em um futuro breve”

Por fim, o último filme da Linha Projeção estabelece um diálogo direto com o público deste festival – universitário. É quase como se pudéssemos participar da videoconferência por meio da qual os entrevistados dão seus depoimentos. O título do documentário dirigido por Bianca Pirmez, Acho que, traduz bem a sensação de incerteza sobre o futuro e a ambiguidade dos sentimentos que perpassaram e perpassam esse período, que não tem perspectiva de fim. Vários desses questionamentos compartilhamos não apenas com os entrevistados deste curta, mas também com a curadoria e os cineastas desse festival que agora se aproxima da sua última sessão, com um tom mais otimista em relação ao futuro. Assim – me valendo de outra citação de Kundera – a penúltima sessão deste festival não trata da projeção de possibilidades por meio de personagens, mas da vida humana a partir do momento em que eles – e nós – cruzam uma fronteira que jamais imaginaríamos cruzar. Continuemos, então, a explorar, no cinema, “o que é a vida humana na armadilha que se tornou o mundo”.

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