texto crítico #03, 2021

Eu era novo e fiquei velho ou era velho e fiquei novo?

por Giuliano Maccio

Ângelo (2021), de Mariana Machado

Dentre a diversidade de grotescas distorções da realidade das quais nos deparamos com cada vez maior frequência, o anti-intelectualismo é um destaque; provavelmente por estar gradativamente ultrapassando os limites dos campos conservadores e reacionários, contaminando até mesmo os setores mais progressistas da sociedade. Obviamente esta é uma questão que também perpassa pelo Cinema e por toda a produção artístico-cultural do país, porém, felizmente, no filme Ângelo (2021), a realizadora Mariana Machado opta por um caminho diferente; sem grandes excessos, apenas transpondo para a tela um olhar muito sensível e carinhoso acerca de seu avô, a autora não só enaltece a figura do mesmo, como, por consequência, a ideia do “intelectual”: alguém apaixonado pelo mundo em que vive e pelas coisas e pessoas que com ele coabitam, assim como por universos e realidades distantes que só existem em suas imaginação e nos seus sonhos mais profundos.

Da mesma maneira que Seu Ângelo Machado decidiu estudar e desenvolver tudo que lhe apetecia em uma única vida, uma vez que, segundo o mesmo, só poderia separar todas suas vontades se tivesse sete como os gatos, sua neta Mariana de certa forma também decidiu fazer vários filmes em apenas um. Ângelo é um documentário que transita entre momentoscom características mais convencionais do gênero – como quando o protagonista se senta de frente para a câmera no ínicio do filme e nos conta uma história ou quando mostra e descreve uma amostra de sua grande coleção de libélulas, animal pelo qual é apaixonado – e momentos mais auto-reflexivos – como quando Mariana nos mostra uma mesa repleta de objetos que lhe lembram seu avô e visita filmes e fotos produzidas pelo mesmo. E, por fim, encontramos também passagens mais intimistas, que confesso serem as minhas prediletas no filme, nas quais a diretora, gentilmente, invade alguns momentos da privacidade de Seu Ângelo. São justamente nesses breves fragmentos em que esse senhor que já tem a “perna porcaria, mas uma cabeça que não é ruim não” apaixona qualquer um que lhe assiste. Não apenas somos hipnotizados pela alegria de viver de um homem idoso cantando ópera em sua banheira como também somos surpreendidos pela materialização da autora através do simples gesto de tentar segurar a câmera com apenas uma mão, enquanto alcança uma toalha para que seu avô possa secar o rosto após fazer a barba. A presença física de Mariana destaca para nós espectadores que estamos nos deparando com um filme-retrato e que, por possuir essa natureza, se trata necessariamente de um recorte, realizado em conjunto entre a autora e seu objeto, algo que não diminui de maneira alguma a potência do filme e de seu personagem. Pelo contrário, percebemos que no fim das contas todos nos apresentamos e somos apresentados como recortes de nós mesmos, colocando nossas melhores experiências sobre a mesa e varrendo para debaixo do tapete nossas características desagradáveis.

Se em Os Dias com Ele (2013) Maria Clara Escobar teve de confrontar constantemente seu pai, Carlos Henrique Escobar, em Ângelo,Mariana Machado se deparou com alguém completamente disposto em construir em conjunto o que terminou por ser uma belíssima, revigorante e apaixonante obra.