texto crítico #19, 2021

Nenhum gesto sem passado

Crítica a Sessão 7 “Julgar a História”

por Giuliana Zamprogno

Para Giorgio Agamben, ser contemporâneo é ser capaz de enxergar não só a luz do seu tempo, mas os escuros. É o exercício de neutralizar o brilho do novo, suspender o tempo presente, criando uma cisão, para então voltar-se à origem e questionar suas consequências. E é nesse ponto de ruptura que o contemporâneo pode lançar um novo olhar não só para o seu tempo, como também para o passado. A sessão 7 invoca o gesto ativo de revistar, reinventar e reivindicar não a história, mas as histórias – de alguém, de uma comunidade, de um país, do cinema.

 “Não tenho rancor, tenho memória” é a frase que encerra o curta-metragem Atordoado, Eu Permaneço Atento (2020), de Henrique Amud e Lucas H. Rossi. Ela resume muita bem a maneira com que o relato pessoal de Dermi Azevedo ganha nesse filme a força propulsora para se expandir, atingindo uma realidade geral, social. Jornalista e cientista político durante os nebulosos anos da Ditadura Militar, Azevedo é a única voz que narra sua trajetória de militância e perseguição política, em denúncia da violência do ontem e da apatia do agora.

Atordoado… opta pela não-obviedade entre imagem e palavra. Imagens de arquivo da repressão militar e do acervo particular de Dermi são dispostas em certa sincronia com seu relato, mas o filme soube balancear muito bem o uso metafórico, mais alusivo, e a função descritiva das imagens. Quando finalmente conhecemos o rosto de Dermi, vemos um corpo praticamente imobilizado, e a partir desse ponto entendemos que, muito mais do que o fardo de ser contemporâneo, o jornalista carrega os traumas da tortura e da censura. Nem o filme nem Dermi precisam mencionar o nome do presidente: o verdadeiro sintoma ali é a sequela de um povo que não assimila sua própria imagem, não reconhece seu passado. O trauma é brasileiro.

Talvez o filme que mais ande na contramão da proposta curatorial seja Peixinho (2021), de Edson Germinio. A animação traz elementos tradicionais como a xilogravura e a literatura de cordel articulados em uma bem explícita narrativa da seca: êxodo familiar e agruras da fome são encarnados em figuras mais cadavéricas do que os Retirantes (1944) de Portinari. Ao lado dos outros filmes da sessão, cuja tônica está no exercício de reimaginação da história, Peixinho reforça as impressões que povoam todo um imaginário sobre o “sertão nordestino”. É uma escolha de continuidade, não de ruptura. A questão que fica é se não existem realmente outras saídas para a representação do Brasil profundo.

Há algo à espreita e nós não sabemos o que é: em um país bastante marcado pela pandemia, M (2020) constrói uma outra maneira de dar forma ao desconhecido com potencial de morte. No filme, um casal dentro de uma casa coloridamente sombria percebe algo estranho do lado de fora, e todas as suas ações são intercaladas com o olhar rodopiante da besta (um monstro? Um vampiro? Um mágico assassino?). A “fantasia dramática” de Nicolau da Conceição está totalmente imersa na iconografia do gênero terror/suspense e nos jogos de adivinhação de alguns espetáculos teatrais do primeiro cinema. Não à toa, o mágico erra a carta: parece não haver baralho ou truque de mágica que sustente a imprevisibilidade do nosso tempo.

Outro filme que traz um diálogo ainda mais evidente entre a situação de confinamento e gêneros cinematográficos é Per Qualche Minuto di Pace (Por Alguns Minutos de Sossego), de Vinicius Bresser e Thomaz Fraga, que faz claro uso dos recursos formais e temáticos do western spaghetti. Em seu apartamento, só se comunicando com o exterior pelo telefone ou interfone, um rapaz vive um crescente estado de irritação com o vizinho barulhento do andar de cima. Um assunto clássico e cotidiano que atinge sua explosão na no man’s land que não é mais o deserto, mas apandemia da covid-19.

Nesse sentido, a relação de 8 Quadras (2020), de Oda Rodrigues, com a história do cinema é ainda mais referencial. No caminho até a cinemateca, duas pessoas encapuzadas com trajes de biossegurança conversam sobre a diferença de formato em filmes brasileiros de diretores e atores negros. O casal anda tão distraído pelas ruas da cidade que nem mesmo percebem os personagens desses mesmos filmes passando por eles e, à medida que o diálogo se desenvolve, a própria visualidade do filme vai se alternando entre imagem digital e efeito de película. Por fim, o trato metalinguístico se fecha quando, de repente, um dos personagens está com a claquete na mão e ouvimos os créditos falados. O cinema olha para o cinema.

Nem sempre nós sabemos ou conseguimos abordar algo da nossa vida, algum causo familiar ou pessoa em particular, de uma maneira realmente cativante. Se Ângelo (Mariana Machado, 2020), filme que abre o Festival, parece se sustentar só na peculiaridade do avô da diretora, Registros (2020), de Luca Albano Santos,último da última sessão, é um filme que, implicitamente, não pretende abarcar a vida de uma pessoa em sua totalidade; e, admitindo isso, procura oferecer não certezas, mas especulações e inseguranças, coisas essas que fazem parte das relações familiares.

Tomando o recurso da voz over a seu favor, Registros é um filme que soube como poucos explorar a idiossincrasia de um ente familiar. A mãe do narrador tem a mania de fotografar obsessiva, compulsiva e excessivamente todos os momentos da vida, por mais banais que eles sejam. Se assumindo como filho, o narrador se permite questionar se o registro não seria uma forma ilusória de reter a passagem do tempo. Ele fala de um sentimento herdado, que repercute em sua vida no medo do esquecimento e na agonia do hoje. Não importa a matéria da memória, a verdade é que o trauma familiar supera qualquer suporte (analógico, digital, fotográfico, vídeo, etc.). Em um contexto de acúmulo de imagens – como bem mostra Um documentário brasileiro (Giovanni Saluotto e Isabella Ricchiero, 2021), filme da sessão extra do Festival – Registros afirma o cinema como a arte do pensamento.

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