texto crítico #01, 2021

Cenas da Infância: entre patos e outras coisas de borracha

por Daniela Zanúncio

Cenas da infância (2021), de Kimberly Palermo

Estrear com um curta-metragem sobre sexualidade e infância já diz muito sobre a roteirista, diretora e animadora Kimberly Palermo, que promete traumatizar muitos outros bonecos infanto-juvenis de lã – ou mesmo pessoas de carne e osso – em suas próximas produções. Mas, por enquanto, falemos dessa animação em stop motion que vem sendo enquadrada nos festivais em diferentes categorias, seja terror, fantasia, drama, filme de meia-noite ou mesmo comédia.

Cenas da Infância tem uma premissa simples, mas muito identificável: o medo de flagrar os pais transando. O protagonista, rato-filho, tem o mundo ao seu redor alterado após passar por tal evento traumático. Como se não bastasse, rato-pai e rata-mãe não estavam limitados ao “papai e mamãe” e, aparentemente, conheciam todo o kamasutra – sem esquecer das práticas BDSM, claro. Filho então enxerga o mundo diferente, repleto de detalhes deturpados. Bichinhos de pelúcia ganham algemas, Chapeuzinho e Lobo-mau fornicam, os patinhos na banheira gemem, a carne de pai é servida em bandeja após a mãe enforcá-lo, a mesa de jantar dá lugar a uma suruba regada a golden shower, onde o que é servido de entrada são genitálias em pratos de porcelana. Freud explica.

São muitos os sentimentos que podem nos envolver ao longo dos quase 6 minutos de filme. Não há certo. O riso é possível, a melancolia e a tristeza também. Afinal, são sentimentos presentes na nostalgia da infância, que certamente vem acompanhada de algumas pitadas de trauma. Mas a ambiguidade de reações que o curta recebe também se dá pela falta de pistas no rosto dos bonecos, que são inexpressivos. O que apenas nos permite indagar o sentimento do protagonista ao se deparar com a cena íntima dos pais que é intercalada com um close em seu rosto. Nesse caso, é Kuleshov quem deve explicar.

Não apenas essa ambiguidade é trazida pelo filme, como também a ambiguidade semântica. Brinquedos (toys), castigo, punição, etc. Há uma duplicidade que permeia ambos os universos semânticos, o da infância e o da sexualidade. Prato cheio para a psicanálise, que Cenas serve quentinho, com maçã como mordaça e amarrações shibari.

O roteiro também dá brecha a uma dupla interpretação: estaria o pequeno ratinho sonhando ou de fato ele viu o que viu na calada da noite? O último plano de “normalidade” antes do incidente é justo o dele indo dormir. A trilha sonora, Kinderszenen (pt.: Cenas da Infância), Opus 15, No. 7, “Träumerei” (pt.: A Sonhar), que faz parte de um conjunto de treze andamentos para piano solo, compostos em 1838 pelo alemão Robert Schumann, pode ser a principal pista dessa suspeita.

A trilha sonora em questão tem peso também na estruturação narrativa do curta, sendo ela quem o divide em três blocos, a partir da repetição do mesmo trecho três vezes. Mas o que difere concretamente mesmo cada bloco é a fotografia e a arte, a música apenas marca. O primeiro trecho instaura o status quo, antes do incidente com os pais, apresentando o mundo perfeito, lúdico, colorido, em tons pastéis, com quadros bem iluminados repletos de uma geometria satisfatória e com personagens centralizados. Já a partir do segundo bloco, rato começa a enxergar as coisas diferentes, ele perde sua inocência e a partir daí seu mundo passa a ter mais contraste. Cores quentes como o vermelho e o laranja dominam. A ironia do uso de tantas cores em meio a essa história sobre trauma torna tudo mais interessante.

A estética presente tem referência no stop motion de bonecos do leste europeu e remete também ao estilo de Christiane Cegavske em seu filme Chá de Sangue e Fio Vermelho (2006), que além da semelhança no uso de ratos como protagonistas, tem bonecos feitos por feltragem, que é uma técnica que em Cegavske pode ser relacionada enquanto um humor escondido no título – o fio de lã da feltragem e o sangue que se dá para execução de tal técnica dolorosa. “Cenas da Infância” ironicamente é uma história que fala sobre BDSM e trauma, que também envolve fios e dor. Além da abordagem da sexualidade na infância e da desconstrução dos papéis de poder no sexo, o curta corrobora no rompimento do tabu da concepção de animação enquanto produto feito para criança, trazendo uma relevante mensagem sobre amadurecimento, traumas e educação sexual – ou a falta dela.