texto crítico #18, 2021

Um Documentário Brasileiro

Um Documentário Brasileiro (2021), de Giovanni Saluotto e Isabella Ricchiero

por Gabriel Ferreira

Um documentário brasileiro tem que fazer o quê? A primeira resposta que o filme apresenta para essa questão é a primeira citação, por João Moreira Salles: “O Brasil será uma tragédia. Uma tragédia bem filmada, mas ainda assim uma tragédia”. O contexto da frase é explicado como uma observação sobre uma faculdade particular carioca que formou um número surpreendentemente alto de cineastas, em comparação com a quantidade de matemáticos.

Parece então que o filme, ao convidar figurões como o próprio JMS, Eduardo Escorel e Helena Ignez, iria se dedicar a produzir interpretações sobre as imagens desta tragédia nacional. De fato, o filme progride em torno de filmagens feitas sobre um Brasil que saiu às ruas e se expôs às câmeras, ora pedindo o básico, ora pedindo absurdos. É significativo que a realização parta de alunos de um curso de midialogia, dada a forma com que tematiza as imagens de protestos como um estudo de caso sobre as imagens produzidas e geradas pelas coberturas jornalísticas, para extrair considerações sobre como o fazer imagens implica em um controle de narrativa pelo qual o autor é sempre responsável. Sobre essa responsabilidade, podemos observar o trecho de reportagem extraído da CNN, onde uma entrevistada afirma que protestos como os que seguiram o assassinato de João Alberto em um Carrefour sempre acontecem, mas que são frequentemente ignorados pelas coberturas televisivas. A conclusão, para quem acompanha a péssima cobertura que a televisão faz de protestos não alinhados com seus interesses – e a compreensiva cobertura dos protestos que se alinham –, é a de que a não exibição de imagens tem o poder de silenciar os gritos nela contidos.

O momento em que o filme assume seu papel de responsabilidade sobre a autoria é explicitado primeiro na intervenção sobre uma fala de Escorel, com um belo plano que rebobina uma fala sua, na plataforma de edição. Esse movimento é reiterado mais pra frente, quando eles vão passando imagens de protestos a favor do Golpe até encontrar um cartaz particularmente grosseiro, transformando o ato da escolha e da organização em matéria do filme.

Mas os realizadores falham com suas próprias boas propostas ao não se decidirem pelo dispositivo. Parte filme-entrevista de cabeças falantes, parte discurso sobre as imagens de protestos e parte meta-filme documentando o próprio processo de edição, Um documentário brasileiro não parece acreditar na capacidade de nenhuma dessas propostas se sustentarem sozinhas – o que, ultimamente, também impede que qualquer uma delas se desenvolva de maneira satisfatória. Os realizadores ordenham uma volumosa série de imagens que dizem (gritam!) muito sobre a grande tragédia nacional, mas diante da falta de clareza na proposta, conseguem extrair apenas um discurso vago e sem conclusões, ou que produz reflexões que não parecem tão conectadas com as imagens que eles escolhem para provocar os entrevistados – principalmente por optarem por mostrar grande parte das conversas desvinculadas das imagens que compõem o dispositivo.

E aqui voltamos pra João Moreira Salles. Burguês, herdeiro de banqueiro, dono de revista e ainda assim acariciado como alguém com respostas. O momento em que Helena Ignez propõe que entre o filme ensaio e o documental haja apenas uma variação no grau do egoísmo me levou, antes mesmo que Moreira Salles o citasse nominalmente, ao seu filme No Intenso Agora. Ao construir um filme em torno das viagens de sua mãe por alguns marcos da esquerda nos anos sessenta, o documentarista não apenas o expõe o egoísmo inato do filme ensaio, mas o egocentrismo de toda uma classe que enxerga momentos de convulsão social como uma forma de localizar no espaço um olhar pro próprio umbigo. O mesmo problema parece permear este filme, que opta pelo ensaísmo metarreflexivo que foca duplamente na figura dos realizadores, em detrimento de um dispositivo que efetivamente colocasse em prática as premissas do filme. Assim, a pior constatação extraída do filme é que, entre o comentário feito por Helena e a defesa que João faz de seu próprio filme, os realizadores optaram conscientemente pelo caminho do documentarista.