texto crítico #05, 2021

Espaços Digitalizados

por Felipe Feitosa

Você, leitor, provavelmente vai encontrar esta crítica em uma página no site do Metrô. Por definição, um site é um “local” na internet que foi construído por linhas de códigos e que contém páginas de hipertexto. Hipertexto é, de forma simplificada, esse conjunto de caracteres, imagens, símbolos, sons e etc. que vão carregar os ditos códigos por uma rede de informações. Esta se opõe completamente ao suporte analógico: necessariamente, estou falando sobre o digital. A câmera do seu celular, por exemplo, não grava a imagem através da luz como uma antiquada filmadora de rolo. Na verdade, ela interpreta essa luz que atravessa a lente e a traduz em um amontoado inimaginável de zeros e uns. Nós não somos capazes de compreender o que cada algarismo significa, por isso é inevitável o retorno aos inúmeros processos computadorizados que vão conseguir – de um jeito que eu não entendo muito bem – traduzir toda essa informação de volta para algum texto identificável.

É meio bizarro pensar que você pode com alguns cliques do mouse ir parar no outro lado da internet, basta se entediar com as baboseiras do meu devaneio para o Instagram tomar o meu lugar no seu monitor. Se você não gostar de algo que eu escrevi, pode, facilmente, abrir as ferramentas de desenvolvedor do seu navegador web e, então, mudar as informações que estão dispostas na sua tela sem nenhum esforço hercúleo.

Logo, toda essa possibilidade de manipulação que o suporte digital disponibiliza faz com que o jeito como nos relacionamos com as mídias se transforme completamente. Pensemos na eventualidade de adulterar uma foto em um editor de imagem. Se tudo nessa fotografia é código e todo esse código pode ser alterado, vale começar a se questionar: o que realmente é essa imagem? Mergulhar nessa rede de informações falseáveis torna tudo meio impessoal, distante, apático e, em certa medida, aterrorizante. O resultado da comunicação na pós-modernidade é essa ligação entre receptor e produto completamente desligada, desapegada e “Desprendida”.

Então, depois dessas divagações – que me parecem necessárias – eu finalmente chego ao conflito direto com as obras da segunda sessão do Metrô 2021. Nenhum dos filmes que foram incluídos em “Desprendida” são resultados de um processo de gravação analógica. Todos os quatro curtas (Passado Recente (Cinco Contos), Modo Noturno, O Caso do Túnel de Siderópolis e Eh 01 Qualquer Coisa) e seus respectivos diretores (João Pedro Rodriguez, Calebe Lopes, Aline Delavechia e Alanis Machado) estão colocando em xeque a forma cinematográfica a partir do suporte que a sustenta, neste caso, o registro digital.

Em Passado Recente (Cinco Contos), João Pedro nos convida a experienciar pequenos filmes, em sua maioria não narrativos, mas que estão a todo momento comunicando algo sobre certos ambientes. O que a priori parece ser uma prática de estilo lisérgico, vai aos poucos, nas junções dos diversos dispositivos de experimentação desses outros “contos”, ganhando força e se justificando como um discurso a respeito de espaços. As imagens desafiam a natureza dessas locações por meio da manipulação do mecanismo que nos localiza dentro dessa outra lógica espacial.

No conto “um”, alguns planos estáticos vão se substituindo em tela por meio da montagem. Uma voz off surge e, então, as imagens parecem reagir aos estímulos que esse “narrador” dá. Quando um filtro jogado sobre o quadro destaca apenas os contornos das formas e o montador sobrepõe os planos, todos os lugares viram um só. Assim, o segundo conto parece dar continuidade a essa mistura dos ambientes, conectando o que parece ser uma casa com uma floresta, através de máscaras e efeitos especiais, enquanto a câmera soa desesperada com a bagunça geográfica, até encontrar um portal. Após adentrar esta passagem as coisas começam a ficar mais calmas, como se um sonho (sugerido por um trecho onde os troncos de madeira enquadram um homem dormindo) estivesse acabando. Dessa forma, a calmaria impressa pelo retorno à objetiva fixa do terceiro conto, junto da luz diurna que ilumina os prédios, me faz pensar que este homem que dormia despertou e precisa lidar com um entorno opressivo e sufocante. O fluxo selvagem do sonho morre quando encontra a verticalidade urbana. E é nesse contraste entre diferentes áreas que Rodriguez articula a primeira ficção da sua antologia.

No quarto conto, dois amigos que estão distantes fazem uma chamada de vídeo, esse outro personagem (que vemos apenas pelo simulacro de uma imagem computadorizada do monitor do protagonista) se descreve como alguém afastado dos centros urbanos e desconectado das redes sociais. O diretor aproveita essa característica incomum para ir crescendo a ideia de que essa figura está surtada. Contudo, no conto “cinco” vemos que o protagonista foi contaminado por um sentimento parecido. O tédio da repetição faz com que ele procure estímulos no analógico, mas isso é impossível. A estilização romântica que toma conta dos planos é fruto de um editor que trabalha com o material digital. Felizmente João Pedro sabe disso e, dessa forma, finaliza seu filme exagerando ainda mais nos efeitos e saindo de um jazz mais clássico para a música eletrônica. Rodriguez promove em Passado Recente (Cinco Contos) um inteligente contraste entre as relações espaciais a partir do digital. Isso se dá tanto esteticamente (tendo em vista as experimentações), quanto tematicamente (basta olhar para o que os personagens discutem e fazem).

Seguindo as relações espaciais que os filmes formalizam, chegamos a Modo Noturno, de Calebe Lopes. Uma narração, feita pelo próprio diretor, descreve um tipo de dispositivo: Lopes havia se juntado com alguns amigos e, usando seus smartphones, filmaram as ruas de seus bairros esvaziadas pela pandemia. O pressuposto documental, que dá início ao curta, é essencial para chegar naquilo que ele tem de mais valoroso.

A narração, após alguns planos noturnos, assume que algo de diferente aconteceu com seus registros e isso mudou o seu “documentário”. Calebe faz um zoom na imagem, aumenta a exposição e, supostamente, revela uma figura macabra que perambulava por suas filmagens. Obviamente, esta criatura foi inserida artificialmente no quadro. Contudo, isto não é, em momento algum, demérito para o curta. Quando revela em detalhes para o espectador essa transformação relativamente tosca, ele se aproxima da ideia de que o realismo cinematográfico perde força a partir da imagem digital.

Essa figura monstruosa vai se espalhando e se repetindo, ela toma conta de um bruto que deveria ser um documento das noites daquela cidade. Acaba que, graças a isso, nós podemos ser envolvidos por um sentimento de horror. Pelo menos pra mim, isso não se dá por um medo deste personagem soturno que invade o quadro, mas sim pelo fato de que agora a própria imagem é uma aberração. E digo isso não resguardando ao digital um lugar de pessimismo e o estigmatizando como algo ruim, mas sim entusiasmado com as possibilidades que ele dá para realizadores como Calebe e Rodriguez fazerem coisas tão interessantes.

Em contrapartida, O Caso do Túnel de Siderópolis, de Aline Delavechia, é um filme que soa perdido dentro de suas próprias aspirações. Trata-se de um falso documentário que ficciona a procura de um grupo de jovens realizadores pelas histórias tenebrosas que envolvem uma antiga mina da cidade. A dinâmica da cena remonta a um jeito de encenar reconhecível dentro do pseudodocumentário. Ao expor a equipe e revelar a feitura da própria obra, acaba se estendendo muito nesse “meio do caminho” e tenta convencer o espectador de que os diálogos expositivos e repetitivos são realmente importantes.

O espaço que dá nome ao filme praticamente não ganha destaque – se não fosse por um personagem que narra os causos de terror nas minas, provavelmente pouco saberíamos sobre os perigos do passado deste lugar. Estamos sempre no carro, deslocados, junto dos realizadores indo de um lugar ao outro. E, assim como os personagens que não sabem o fim desta história, a equipe de direção parece concluir tudo abruptamente a partir de uma abordagem injustificavelmente desconectada.

O abandono do dispositivo que simula a câmera diegética nos últimos segundos do filme me parece ser o ato falho de não conseguir solucionar aquilo de um jeito melhor. Alguns efeitos e estilizações ligeiras na montagem não fundamentam a quebra que se dá com aproximados dez minutos de construção. É uma escolha linguística que parece fraca e, na minha experiência, não acrescenta valor à produção. Na verdade, acentua uma dimensão genérica do filme. As escolhas comuns que vão formatando o curta acabam limitando qualquer relação mais original e criativa que ligasse a obra com essa ideia de um registro mais realista e de um diálogo mais sincero com aqueles espaços.

Assim, pensando os espaços e as relações sinceras que nós temos com eles, chegamos ao último filme da sessão. Eh 01 Qualquer Coisa, de Alanis Machado, é uma animação experimental que, ao meu ver, busca simular um ambiente que todos nós compartilhamos. Inclusive estamos fazendo isso agora, eu e você, meu caro leitor, estamos flutuando no cenário que Alanis procura investigar. Um amontoado de imagens psicodélicas vai tomando conta do seu monitor, no fundo você sabe que está vendo um filme, mas de alguma forma parece que seu computador está bugando.

Abertamente, arrisco dizer que este curta não tem lugar numa tela maior que poucas dezenas de polegadas. Que ele não seria tão inquietante se no nosso campo de visão não tivesse um mouse e um teclado. O ambiente do desktop, que Machado está recriando, é chave para um dialogo mais franco com o filme. Quando lapsos de formas comuns ao cotidiano da internet começam a piscar em tela, nós somos convidados a lidar com um simulacro do que é esse espaço completamente digital.

Os estímulos repetitivos e mudanças constantes de “cenário” traduzem um pouco dessa velocidade na forma como lidamos com a mídia atualmente. É como se a animação estivesse interpretando esse fluxo constante da internet e da comunicação digital. Interpola numa grande desordem visual: imagens de desenhos; gravações feitas na tela do computador, onde aparecem sites famosos; gameplays de jogos diversos e etc. Infelizmente, em alguns momentos pontuais o discurso das imagens soa muito definido, tendo em vista um mecanismo que remete a um ambiente multilinear. É o caso da participação curiosa de Olavo de Carvalho. Contudo, todos estes zeros e uns, que se traduzem em uma grande anarquia discursiva, são uma curiosa e instigante experiência sensorial.

“Desprendida” junta um grupo de obras que se comunicam muito entre si. Um certo desapego as embrulha: seja em um desprendimento de uma relação mais definidora com os espaços que nos envolvem (Passado Recente (Cinco Contos)), ou em uma relocalização de um outro ambiente em que nós também vivemos (Eh 01 Qualquer Coisa); pode ser por meio de um desligamento com a ideia de um registro realista (Modo Noturno), ou no desprezo do próprio dispositivo de encenação (O Caso do Túnel de Siderópolis). É a relação entre os novos suportes para o fazer cinematográfico e as superfícies que nos embalam – fisicamente ou não.