Reverberações da “Sagrada Travesti do Evangelho”, por Patricia Silva da Ressureição

“Sagrada Travesti do Evangelho” é um filme que desafia o espectador a sair de sua zona de conforto e se envolver com realidades muitas vezes ignoradas ou desconhecidas. Ao nos apresentar a vida de Manuela, uma mulher preta, transexual, periférica e pobre, o filme nos transporta para uma jornada íntima que explora sua fé, sua solidão, seus medos, desejos, afetos e anseios. Manuela é uma sobrevivente, uma protagonista que carrega em seu corpo as marcas da exclusão e da resistência.

O filme explora a linha tênue entre ficção e realidade, onde os momentos de ficção surgem como expressões dos desejos internos de Manuela — muitas vezes carregados de melancolia e tragédia. A cuidadosa escolha dos estilos de câmera intensifica essa dualidade, resultando em uma narrativa que se desdobra em múltiplas camadas. Mantemos o olhar direcionado para Manuela e, nos momentos em que ela não está em cena, o filme mergulha no irreal, abordando temas como sonhos, depoimentos, questões de gênero e pensamentos internos. Quando Manuela está em cena com outra pessoa, o filme opta por planos gerais. Um exemplo significativo de como os pensamentos da protagonista são visualmente representados ocorre quando Manuela está à beira do rio, entra na água e submerge. Seria esse um gesto de tentativa de fim da vida ou apenas a manifestação de um desejo profundo? Esses pensamentos são habilmente traduzidos em uma escrita visual, mas há aspectos que poderiam ter sido aprimorados, como a iluminação e o tratamento final das cores do filme. Muitas cenas parecem escuras e com uma textura granulada que, embora possa ter sido uma escolha estética, poderiam ter sido mais cuidadosamente trabalhadas na pós-produção, na edição, para garantir uma melhor clareza visual.

A história se inicia com Manuela sofrendo de uma insônia persistente, aparentemente carregada por dias intermináveis. Essa insônia, talvez, seja um reflexo de suas inquietações e de sua luta constante por espaço, reconhecimento e autoconhecimento em uma sociedade que frequentemente a ignora, a sexualiza, a explora. Um diálogo fundamental ocorre entre Manuela e o padre da igreja onde ela reza do lado de fora. O padre a convida a entrar e se confessar, ela entra, mas Manuela, em um momento, revela que sabe para onde irá quando morrer, e não acredita que será para o reino dos céus, apesar das tentativas do padre de convencê-la do contrário. O que torna o filme particularmente interessante é que ele não se limita a abordar a exclusão social, mas também se aprofunda na solidão que acompanha a vida de uma mulher trans. Vale destacar que o filme também nos traz momentos de afeto: mesmo sendo tímida e reservada, Manuela é beijada, seu corpo é amado por alguém que a protege e demonstra esse amor.

A solidão de Manuela, e não me refiro à solidão amorosa, é retratada com uma sensibilidade que transcende o simples retrato de sua marginalização, convidando o espectador a refletir sobre as complexidades da existência trans em uma sociedade excludente. Como mulher negra, sinto a profundidade e a complexidade dessa solidão, mas reconheço que há aspectos da experiência trans que ainda não consigo compreender completamente. No entanto, o filme me faz querer explorar e entender essas vivências. Megg Rayara, a primeira travesti negra doutora em Educação no Brasil, pode nos ajudar a entender melhor essa questão em um de seus artigos, intitulado “Por que você não me abraça?”. Esse artigo nos traz a invisibilização da mulher travesti e/ou mulheres transsexuais negras no movimento negro. Megg Rayara realiza tanto um mapeamento histórico quanto propõe reflexões sobre questões de gênero, identidade de gênero, orientação sexual e naturalização de identidades binárias que devem ser discutidas na sociedade atual.

“Sagrada Travesti do Evangelho” traz esse exercício de empatia e discussão na sociedade e é uma obra que não só revela as dores e os desafios da exclusão, mas também celebra a resistência, a fé e a humanidade de uma protagonista que, mesmo em meio às adversidades, mantém sua dignidade e sua capacidade de sonhar. Posso ser uma eterna otimista, que pensa que pode mudar o mundo de alguma forma, mas tenho em mente o pensamento da incrível Grada Kilomba:

Reparação, então, significa a negociação do reconhecimento. O indivíduo negocia a realidade. Nesse sentido, esse último caso é o ato de reparar o mal causado pelo racismo através da mudança de estrutura, agendas, espaços, posições, dinâmicas, relações subjetivas, vocabulário, ou seja, através do abandono dos privilégios.

Referências

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. 1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

RAYARA, Megg. Por que você não me abraça? Sur: Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 28, p. 92-105, maio 2019. Disponível em: https://sur.conectas.org/wp-content/uploads/2019/05/sur-28-portugues-megg-rayara-gomes-de-oliveira.pdf. Acesso em: 29 ago. 2024.

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