Manchester: entre a distância e o choque, por Luiz Eduardo Kogut

Manchester é um filme que se divide entre dois espaços: o tido como “real”, da detetive Agnes, protagonista e único corpo presente em tela, e o “Terceiro Mundo”, espaço quasi-virtual em que a personagem adentra para suas investigações. O primeiro segue uma lógica de gênero de um cinema noir: a investigadora, interpretada por Camilla Del Negri, narra em off sua jornada com um caso não-solucionado enquanto trabalha em sua casa. Suas investigações, porém, se concentram na transferência de sua consciência para um outro campo, um outro mundo. Filmado em espaços abandonados e esvaziados de São Gonçalo/RJ, essa espécie de zona stalkeriana é proposta por filmagem em drones e uma decupagem inspirada no gameplay de jogos do começo dos anos 2000. Os planos amplos de fábricas e prédios vazios se seguem como uma investigação do espaço, instigados por legendas didáticas que guiam a ação. Nessa investigação, as imagens eventualmente se fecham em objetos, espaços e pistas visuais que a investigação encontra – reiteradas  pelas novamente pelas legendas.

Esse terceiro mundo, porém, é um espaço sem corpo. A jornada da personagem, em busca de um homem desaparecido, é guiada unicamente pelas imagens e suas narrações. O diretor e roteirista Gabriel de Souza Vieira parece propor um filme em que o grosso do que entendemos como trama se concentra em uma dimensão puramente imagética, com este espaço apresentado por uma dinâmica de jogo com filmagens aéreas fluídas e imagens límpidas, mas dentro da decadência dos espaços abandonados. Essa escolha reflete, ao mesmo tempo, uma questão de possibilidade prática de se realizar um cinema de pouco orçamento, de propor um filme de gênero a partir das limitações dadas à realização – ou seja, um modo de sobrevivência -, mas também perpassa a dimensão estética.

Manchester optar por essa ruptura entre dois modos de representação para repensar a zona de Tarkovsky, o noir e uma ficção científica parece nos levar à ideia de uma distância que há entre esses modos – uma distância que demonstra também uma ruptura na própria forma fílmica e na maneira de representar um certo anseio contemporâneo. Essa distância está também no próprio cenário em que a detetive Agnes reflete sobre a investigação, onde há a mistura de um futurismo-B na caracterização dela e de seus equipamentos de transferência para o Terceiro Mundo com diversos elementos anacrônicos, que visam se referir a tropos e clichês do gênero de filmes de investigação – como os maneirismos da atriz com seu cigarro. Até mesmo o cenário da casa de Agnes parece estar entre o caseiro brasileiro e uma cuidadosa direção de arte que procura deixar o espaço com essas ligações claras a um passado pasteurizado.

Essas distâncias parecem querer a todo momento aproximar ambos os campos, contrastar essas existências dicotômicas – pensar que o noir só existe por causa do gameplay drone e vice-versa, que o caseiro só está ali junto ao (ficcionalmente) montado; toda presença surge de outras milhões de ausências. Mas há, também, uma certa melancolia do vazio que existe entre os ambos os espaços, de como por vezes estes parecem distantes entre si – vazio que existe em um filme pensado, justamente, para filmar espaços abandonados e esvaziados. Da correlação dos vazios, há uma forte melancolia desses mundos que não conseguem dialogar. Essa melancolia serve quase como razão de existência do filme: a forma de um mundo que não tem mais tempo, que perde-se nessas dimensões conflitantes.

Em certo momento da narração, Agnes comenta que aprendeu a se projetar no Terceiro Mundo quando criança e preferia estar lá do que no seu mundo real – horizonte que parece ter sido perdido com a história melancólica que ouvimos sobre o homem desaparecido que ela procura. A melancolia está também nessa perda, na diferença entre um passado não visto e um presente que parece avulso frente à outra realidade. Nesses campos em batalhas distantes e nessas confusões de mundos, porém, o filme propõe sugerir possibilidade de abertura de novos mundos.

Nesse aspecto, as grandes cenas do filme parecem ser as iniciais e finais: que Agnes, ao refletir sobre a própria natureza de sua investigação no off, passeia por prédios abandonados, portas quebradas, paredes pichadas, móveis abandonados e carteiras escolares empilhadas: reflexos de um mundo passado que permanece em ruínas, mas é testemunhado pela presença da detetive. Assim como ocorre em momentos posteriores da investigação-virtual, em que a câmera adentra a prédios demolidos e navios abandonados, esses planos carregam não só uma força imagética daqueles espaços que parece romper com um certo marasmo que há nas imagens fluídas do drone, mas também trazem, novamente, o modo de sobrevivência à tona – pensando a própria forma de realização do filme como esse trabalho de pesquisa e possíveis invasões, literais e imagéticas, de espaços e mundos quase esquecidos.

O anseio do filme de realizar aqueles espaços em formato artístico se justifica ali, onde ambas as formas de representação não se separam, mas se chocam completamente e se confundem: qual é a temporalidade daquelas imagens? Vemos o mundo ou o Terceiro Mundo? A distância entre os mundos precisa ser tão demarcada? Longe de possíveis amarras do retrato do gênero, ali há uma força de ir ao espaço – tanto do ato criativo do fazer fílmico, quanto de Agnes que se mostra presente, insistente, em um mundo que pode, enfim, parecer seu.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *