Transurbano – memória e subjetividade, por Giovanna Bohrer Bertoni

As imagens gritam. Imploram para serem reconhecidas. Pulsam em dissincronia num ato de reconfiguração do espaço urbano. É essa a mais imediata impressão de Transurbano, curta-metragem dirigido por Francisco da Silveira, exibido na primeira sessão da Mostra Competitiva do 7º Metrô. No caos de fragmentos adquirindo vida em quatro minutos de duração, o que resta? O que nos cabe reter dessa orquestra anárquica? 

Gravada em Super-8, a obra se debruça por cenas cotidianas de Curitiba – ruas, estátuas, praças, parques e pessoas que ocupam esses espaços – de forma altamente experimental. Através de uma coreografia protagonizada pelas imagens em consonância com a trilha sonora sintética, quase opressora, o diretor dá vida ao seu olhar da cidade. A partir daí, o que é familiar agora causa estranhamento, a função dos espaços é subvertida e tudo adquire um sentido completamente novo. A rotina é sobreposta, invertida, violada – mas se mantém ali, e a síntese desse ruído é o que origina essa cidade subjetiva, condicionada aos tantos olhares que a cercam. Essa é só mais uma das tantas cidades possíveis. 

Mas ainda há algo de familiar nesses fragmentos. Talvez não devido ao que é filmado, mas à sensação de compreender o contexto de cada um dos planos. Ao gravar em 8mm, o diretor se condiciona às possíveis imperfeições, ou limitações, que possam surgir de uma fotografia “às cegas” – em comparação com o que o digital permite nos dias de hoje. E são esses ruídos, essas falhas, os desfoques e instabilidades, que reforçam a subjetividade e tornam esse olhar ainda mais especial. Há um compromisso com a própria condição de existência das imagens que assistimos. 

No livro Cascas (2017), o filósofo e historiador francês Georges Didi-Huberman conduz uma análise que conversa muito com este aspecto contextual do filme. O autor explora as contradições do ato de “embelezar para educar”, ao tratar das fotografias clandestinas feitas por um membro do Sonderkommando expostas em Birkenau, em Auschwitz. Para Didi-Huberman, no momento em que o museu modifica esses registros na tentativa de torná-los, de alguma forma, mais acessíveis aos visitantes, o contexto é perdido. Toda a história de resistência por trás de fotos atravessadas, tremidas, que quase nada capturam, é apagada. Quando em Transurbano, então, o diretor toma a decisão de manter suas imagens “imperfeitas”, mantém também o testemunho daquele momento compartilhado com a cidade, mantém a memória do que documenta. 

Para além de enxergar o cinema no não-proposital, o curta também se demonstra sensível aos pedaços urbanos muitas vezes despercebidos. Nesse sentido, em especial, percebemos uma inspiração clara no cineasta Jonas Mekas, ao que explora as infinitas possibilidades de uma produção que olha para o invisível – ou para o tão visíviel que torna-se banal. Aqui, a obra exercita o ato de se reconhecer como parte do todo, e enxergar o potencial inventivo, ou a autenticidade, que os detalhes cotidianos oferecem. 

Estamos cercados pela imensidão de vagões de trens, e então somos transportados a uma rua movimentada. Agora são ruas, agora são pessoas. Sorrisos, caminhos, estátuas. Uma praça, passos, um caleidoscópio urbano. Agora estamos em um parque de diversões, num passeio por suas arestas nunca antes percebidas. Criamos novas impressões de espaços já tão conhecidos, tão habitados. Adquirimos um novo olhar, nasce uma nova cidade. É esse o encanto do cinema. 

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