Fechando a primeira sessão da mostra competitiva do Metrô, com cinco curtas que investigam as memórias fixadas na materialidade que nos cerca, Sombras de Macumba na Luz da Memória já no seu título propõe a imagem de algo que é revelado na sua meia-forma, incompleto, a partir de um olhar particular, afetado pelo que registra. O curta se estrutura enquanto um “filme de arquivo”, apresentando documentos a partir de um interesse histórico ou pessoal. O que conduz o caminho aqui, é a pesquisa do diretor carioca, Mysteryo, da Universidade Federal Fluminense, a respeito da maneira que as manifestações religiosas afro-brasileiras são representadas em reportagens da década de 1920 e nas filmagens da Missão de Pesquisas Folclóricas, projeto de Mário de Andrade na segunda metade dos anos 1930.
A partir das publicações deste período da metade do século passado, disponíveis na Hemeroteca digital, podemos notar que se tratava de um momento de aprofundar o projeto modernizador da urbanização e da cultura brasileira, que incluía aí o estrangulamento das culturas que dividiam o mesmo território. Assim que as reportagens que descrevem de forma sensacionalista e violenta surgem na imagem, percebemos que estes documentos estão impregnados de uma impressão distorcida acerca do outro, sempre buscando olhar de um lugar mais longe possível para os rituais religiosos que descrevem.
Sobre esta distância, acentuada pelo tempo que incide sobre a matéria, percebemos que os documentos em que estas percepções estão empregnadas estão submetidos à inevitável desfiguração do desgaste, assim como a eterna atualização. Assim, cada figura é transferida de um formato a outro, da película ao digital, sempre deixando algo no caminho ou incorporando novos aspectos. A síntese da pesquisa feita pelo diretor é confrontada pelas manipulações feitas pelo mesmo, através dos softwares de edição. E, partindo de materiais já em baixa resolução, onde as imagens estão fragmentadas ao ponto de reduzir as figuras que aparecem nelas à manchas e borrões, o diretor parece dar de cara com um problema: como ilustrar este imaginário sem ser conivente com ele? Ao reproduzir as filmagens realizadas nos terreiros deste período, Mysteryo opta por acentuar o ruído deformador presente nas suas fontes, colocando assim mais obstáculos entre o registro daquele tempo e o nosso olhar de hoje.
Porém, o estranhamento maior acaba recaindo na maneira com a qual o som é utilizado, sublinhando um aspecto aterrorizante que reverbera uma suposta incompreensão insuperável que aqueles documentos têm do seu objeto, assim como um terror que o diretor-pesquisador tem dos documentos em si.
Cada interferência é empilhada em cima da outra e logo não conseguimos distinguir mais o que estava lá no início, mesmo que sempre se volte ao mesmo ponto, repetindo e repetindo. Assim como nos filmes de Ken Jacobs, em que o cineasta estadunidense explora essas sobreposições em cima de imagens de filmes antigos com o fim de trabalhar este imaginário sempre tateante pela materialidade em que ficará cristalizado.