Há uma necessidade pungente de se intervir na realidade como está posta. A consequente formação de imagens singulares a partir desse desejo, de novas formas de ver, é o resultado do sentimento insuperável de transpassar, ressignificar o mundo. Seja através da ficcionalização e da fabulação, do experimentalismo ou da reformulação de uma perspectiva construída, percebe-se nos filmes da Primeira Mostra Competitiva do 7º Metrô uma propulsão energizada pelo ímpeto de se tornar presença, de enxergar o mundo e ser reconhecido nele.
Algo tangenciado pelo noir “Manchester”, primeiro curta a ser exibido, onde a detetive Agnes navega as áreas inertes de espaços arrasados, das ruínas que foram um dia promessa de desenvolvimento urbano. Mas que, da mesma forma como esse avanço é facilmente arquitetado às custas da vida e trabalho de tantos, ele pode ser com a mesma presteza abandonado. Resta aos personagens vagarem neste Terceiro Mundo virtualizado como espectadores fantasmas de um arrasamento bastante real. As muitas manchesteres brasileiras parecem todas apontar para o mesmo projeto de progresso em franco declínio.
A cidade como objeto e potência criadora é vista em “Transurbano” na forma como a obra concede uma personalidade própria a este espaço, posicionando este modo de olhar como elemento central de sua construção estilística. Através da utilização do Super 8 e da fragmentação das imagens captadas em mosaicos, sobreposições e cortes rápidos para zooms, retoma algo de uma outra chave temporal, permitindo este reposicionamento do olhar sobre a cidade. Visão que se acentua, ainda, na forma como a banda sonora é utilizada junto a montagem, construindo um ritmo ruidoso, cáustico, mas cujas imagens evocam algo de ocasional, fruto do encontro e da interlocução com a urbe em seu potencial de geração de horror e encanto.
“Casa 513” constrói tessituras semelhantes ao fabular o espaço da casa-título como um organismo vivo, uma casa que pensa, sente e recorda, criando uma fantasia lúgubre da memória dos espaços que a preenchem. Nostálgica dos que por ali passaram e do que ela já significou, agora experimenta um esvaziamento de suas potencialidades, quando os novos proprietários que chegam com caixas e mais caixas, transformam-a em um depósito. Pessoas que nada veem naquele espaço para além da rigidez do seu uso puramente material.
Pausa para um fato: Mais de 60% da população brasileira é católica. Muitas destas pessoas cresceram e foram criadas na igreja. Quantas delas não estariam sentenciadas ao inferno segundo as visões dogmáticas da fé cristã? Em “Sagrada Travesti do Evangelho”, o dilema de Manuela é o da contradição essencial entre o corpo que ela habita, a crença que perpassa sua existência e o filme que nasce deste tensionamento. O resultado é um experimento em auto descoberta e afirmação de si através da potencialidade das imagens que o cinema viabiliza. Os artifícios utilizados para expor o filme enquanto forma parecem querer encontrar substrato simbólico no real para, dessa forma, sacralizá-los.
Fechando a sessão, “Sombras de Macumba na Luz da Memória”, retoma o tema do sagrado e do profano através da descentralização de narrativas sobre as manifestações religiosas e ritualísticas afro-brasileiras. Ao tomar para si o material de arquivo de mais de um século antes e reconfigurar os registros de modo a avançar, retornar, repetir os passos e distorcer as imagens dessa “dança macabra” (forma como os jornais descreviam a prática religiosa), o filme representa tal abertura de possibilidades. Ironizando o pavor incitado pelos macumbeiros, o rito é tornado em algo fantasmagórico, numa construção visual carregada de exterioridade. Pela retomada do material captado em missões de estudo e tipificação antropológicas, na ruptura com os sentimentos originais que aquelas imagens e manchetes queriam evocar, “Sombras” encontra, no presente, outro espaço de expressividade, justamente pelo ruído e dissonância que criam com esses sentidos.
Estes filmes ora partem de um movimento ficcionalizante das observações e experiências de seus realizador( )s, a partir da concretude da realidade apresentada, ora olham para esses mesmos dados e os relativizam, ao adicionar perspectivas novas e ampliar o campo de onde se pode observá-las. Formas fílmicas distintas que urgem da necessidade de possibilidades criativas de enfrentamento, de (re)posicionamento e da não tipificação de olhares. É dessa forma que esta primeira mostra parece observar os arredores, o que foi e o que está sendo, e apontar para um horizonte amplificado.