Néctar do Tempo: protagonistas do cotidiano, por Giovanna Bohrer e Glauber Machado

É comum que hoje, em resultado do capitalismo como sistema econômico vigente e da consequente visão da arte como um produto, o cinema, em particular, adquira características que busquem se enquadrar na magnitude das grandes produções comerciais. Há uma perversa busca por grandeza, por uma jornada épica que satisfaça os padrões do cinema como indústria. No entanto, é interessante perceber que novas gerações de cineastas ainda nutrem interesse pelo caminho contrário. Nesse sentido, Néctar do Tempo, dirigido por Pedro Rodrigues, parece habitar seu próprio tempo e espaço, sem pressa em apresentar um grande tema e ciente de que é possível exprimir arte da simplicidade do cotidiano. 

Na obra, acompanhamos trechos de uma existência remota, ao sermos situados em uma fazenda de propriedade de Raimundo/Seu Paraíba, personagem foco da narração, cuja rotina é preenchida por um vagar alheio às velocidades impostas pela vida na cidade. Há, aqui, uma fotografia extremamente sensível, que acaba sendo um dos maiores destaques do filme. Através de planos atentos, pacientes com o que apreendem, somos levados a, de fato, perceber cada detalhe do dia a dia dessa figura e enxergar nesse ritual uma beleza que talvez os olhos, sem o intermédio da lente, não fossem capazes de capturar. O mundano torna-se extraordinário. 

O homem, em seu pequeno casebre no campo, prepara a própria refeição, trata de suas cabras, as ordenha, produz carvão a partir de árvores do terreno, e é ainda um apicultor habilidoso, cuja produção lhe garante uma fonte de renda extra. Atividades que ele exerce e lhe permitem estabelecer um meio de vida próprio, autossustentável, que o filme opta por adentrar profundamente, ao posicionar a câmera de modo a não alterar aquela realidade. A apresenta se pondo diante dela como mais um elemento ocioso, pertencente àquele espaço.

Quando a voz de Raimundo enfim surge, em off, já estamos sendo introduzidos aos processos que percorrem seu trabalho na apicultura. Ele se coloca diante dessa oportunidade dialógica que o aparato fílmico lhe permite, e de fato, conduz como a própria história será contada. Quando fala sobre as condições que lhe possibilitaram a realização do trabalho como apicultor, quando recebeu algumas das caixas de seu apiário, ou quando conta como a fazenda onde vive foi vendida a ele sob uma espécie de acordo de camaradas, o personagem posiciona a narrativa sob sua própria ótica e modo de vida, e o filme se permite segui-lo e conduzir-se por intermédio dele.

Fica evidente nesse retrato que se cria a existência de uma outra sensibilidade diante da vida e da natureza, do estar e lidar com a alteridade, que demonstra a sabedoria desse homem e tantas pessoas como ele, que vivem fora de uma lógica hiper produtiva e utilitarista, propriamente associada a uma realidade social urbana capitalista. Simplicidade no trato que transmite uma potência de possibilidades sensíveis de se colocar no mundo.

A beleza da natureza como ativadora dessa grandeza alcança seu êxtase quando observa-se o produto de seu trabalho, metáfora maior dessa relação idiossincrática. Ao cortar os favos de mel diante da câmera, o líquido viscoso escorre, reluzindo em tons brilhantes, a textura capaz de gerar uma sensação quase tátil, o sabor como que escapando da dimensionalidade dos planos fechados. O próprio Raimundo reconhece o encanto do processo quando comenta “é uma beleza isso aqui”. Aos 66 anos, ele afirma que ainda tem muita potência, e não é difícil se questionar se tal modo de vida não é um fator determinante para tamanha energia. Quem sabe não seja esse o meio de se encontrar o tal néctar do título.

O documentário ilustra esse sentimento e observa com carinho esse protagonista do cotidiano, representante de forças múltiplas, incógnitas, nos cantos remotos do país, longe dos empurrões nos ônibus da cidade e da busca por um excepcionalismo brutalizante. Dessa forma, alcançam a seu modo outra temporalidade de estar, outro ritmo no olhar, e por fim, demonstram, tanto personagem quanto filme, uma capacidade sensível de habitar o mundo. 

Autores

  • Giovanna Bohrer Bertoni

    Giovanna Bohrer Bertoni é uma estudante de jornalismo de 19 anos, mora em Curitiba e tem experiência em jornalismo cultural, assessoria de imprensa e comunicação audiovisual. Apaixonada por cinema, estuda filmes e crítica cultural de maneira independente e escreve análises sobre esses temas em sua newsletter. Já cobriu eventos como Olhar de Cinema, FRIACA e Afrika XX e teve textos publicados em variados sites e veículos de imprensa.

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  • Glauber Machado

    Glauber Machado da Silva é graduando em Rádio, TV e Internet pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Excerto do Teatro, guarda algumas experiências na atuação cênica e audiovisual, com destaque para os curta-metragens “O Reflexo” (2019), Não Me Esqueças (2022) e Vento Turvo (2023, em finalização) e o espetáculo “Cancioneiro de Lampião” (2023). A primeira experiência regular da prática de reflexão sobre a linguagem cinematográfica veio com a participação no projeto de extensão “Rádio Facom”, onde roteirizou, co-apresentou e editou o programa sobre cinema “Hollywood Babylon” (2022-2023).

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