Glauber Machado sobre a Mostra Competitiva 5

Assim como já bem observado por meu colega de júri, Luiz Eduardo Kogut, percebo em muitos dos filmes que estiveram presentes no 7º Festival Metrô de Cinema Universitário uma pulsão de retratar uma ideia de cinema jovem. Muitos desses filmes foram realizados por jovens universitários, e lidam com as tensões e dinâmicas de um filme produzido no contexto da universidade, partindo de um retrato de uma juventude como uma lente que se lança sobre si mesma. 

A última Mostra Competitiva, exibida no sábado, 31 de agosto, parte deste lugar de refração das imagens, em que elas se modificam em contato com as formas, linguagens e óticas de cada produção, e acabam por criar um mosaico das potências, desejos e anseios dessa juventude. 

A vontade de lidar com as questões inerentes ao ser jovem se faz notória de forma mais direta na sessão com “Sorriso Amarelo” e “Carcinização”, onde esses dilemas estão no cerne do discurso que as obras elaboram. Porém, cada filme lida com o sentimento de crescer, adquirir responsabilidades, ter de responder a um mundo que espera certos compromissos de alguém nessa idade, à sua própria maneira.

Carcinização é um filme animado, onde três jovens amigos parecem se conectar através de suas incertezas. Mari quer trancar a faculdade, Liz está insegura sobre sua música e P1 decide que quer virar um caranguejo. Três personagens atravessando situações de transição em suas vidas, vivendo e sentindo na pele os ritos de passagem que parecem ser as indefinições da vida de um jovem adulto. Através de sua técnica experimental com um design de personagens  fofinhos mas que nas ambientações e cenários transmite um aspecto lisérgico e até mesmo áspero, o filme lida com o absurdismo dos processos a que nos sentimos submetidos para “ser alguém na vida”. Sem nunca perder de vista o grande valor humano nas amizades e cumplicidade que se criam diante da atmosfera soturna que parece envolvê-los nessa busca.

Sorriso Amarelo constrói uma dialética mais verossímil à experiência comum que experimentamos nos primeiros anos da vida adulta. Encontra nos diálogos cotidianos, na encenação naturalista e nas escolhas estéticas, com imagens em baixa resolução, iluminação natural e cortes abruptos como que para esconder falhas nas tomadas, um outro lugar expressivo. O filme acompanha Rita, logo após sua volta ao apartamento onde morava depois do término com sua ex-namorada, onde a narrativa não se constrói, mas se revela através das interações casuais da protagonista com os amigos que encontra. Essas escolhas estéticas e narrativas impregnam o filme de um sentimento de familiaridade, localizando a obra como um retrato muito preciso de um recorte da experiência jovem moderna. Todos os personagens transbordam um carisma e personalidade que parece próprio dos seus intérpretes, de tal forma que as escolhas de enquadramento e montagem convergem de forma a maximizar sempre o que há de mais sensível no quadro, fugindo dos ruídos que pudessem nos tirar da encenação. Firmemente dedicando-se à instabilidade poética da proposta e a transformando em potência criativa.

De uma forma bem menos literal, A Agente traz na sua linguagem e construção estético-narrativa uma particular expressão de juventude. Não articula uma visão sobre o tema, mas apresenta através das peripécias de Célia, uma agente de saúde obstinada que se coloca na missão de realizar a checagem de uma casa cujo acesso lhe foi negado, um apuro formal e sensibilidades próprias de um humor característico da TV dos anos 2000 e da internet. Apesar de construir paralelismos com algo de um cinema como o de Buster Keaton, ainda que de forma incidental, justamente por esta ser uma fonte tão primária para o tipo de humor que ressoa com o público até os dias atuais, sua montagem e narrativa apontam mais para algo do gênero da esquete. Dedicado a embarcar nos absurdos e desafios que a personagem coloca diante de si, como desenlaces de uma missão particular, o filme parece também se comprometer com sua proposta, e nisso nos diverte ao criar uma outra relação sensível com a linguagem, própria de uma visão fresca e jovial na forma de estar em contato com ela.

Agarra parte da dinâmica da descoberta juvenil e do despertar sexual, através do encontro entre dois jovens e a revelação de um cenário de fantasia que se põe como possibilidade nos planos estáticos de seus stills, que em conjunto constroem a narrativa do foto-filme. O sequenciamento das fotografias, pelo seu aspecto mágico proporcionado pela técnica de longa exposição, pela dinamização das durações entre uma e outra imagem e pela criação de uma ambientação sonora competente, nos insere dentro da possibilidade de construção de uma realidade possível. Sentimos, nas trocas de olhares com a mocinha vestida em trajes de festa junina, o desejo do rapaz que somos nós, a câmera subjetiva. Somos inseridos na narrativa e postos diante da possibilidade de fantasiar com um amor selvagem, com a descoberta de outras possibilidades de existência.

Pela linguagem dos documentários, estas pulsões de juventude talvez se manifestem necessariamente de outras maneiras. Lançar um olhar sobre o mundo como ele está posto, tensiona as cordas da criação artística de outro modo. Entre sonhos e barracos, por exemplo, insere-se dentro da rotina dos habitantes da ocupação Maria do Arraial, habitados em um antigo prédio abandonado no centro de Belo Horizonte. Ao adotarem tal método, de cunho observacional, é como se o grupo de realizadores se permitisse deixar capturar pela realidade como ela se apresenta. É através da montagem, entretanto, que o filme ganha maiores contornos políticos, ao posicionar recortes de fala de lideranças do movimento ou excertos de áudio de matérias jornalísticas, que dão conta de dimensionar o déficit habitacional existente na cidade, assim como as motivações políticas e materiais da ocupação. Esse contraste entre se deixar capturar por uma realidade e, ao mesmo tempo, dimensioná-la em seu contexto mais amplo, parece fruto de uma consciência social que posiciona o documentário como espaço de enfrentamento ideológico. Porém, a obra parece entrar em conflito, justamente ao confiar demais na observação. O filme falha em dimensionar aqueles indivíduos vivendo em cômodos, renomeados como barracos, como são: Pessoas com histórias próprias e motivações particulares. Os realizadores sabem o que querem dizer, reconhecem o contexto social que cria a necessidade de ocupações, porém ainda pecam ao não se abrirem totalmente ao que o mundo e àquelas pessoas têm a mostrar. Talvez esse desejo de inserção não dê conta, para quem observa externamente, de dimensionar todo um modo de vida.

Transa e Fronteira parece, entretanto, pecar pelo excesso. É um filme cujo discurso carrega grande peso, não só dramático, mas também por tangenciar uma realidade particular intensa, caótica e ressentida. Através de imagens de arquivo, gravações em celular, performances de cunho sexual, prints de WhatsApp, chegando mesmo a inserir trechos de sextape na montagem, o curta cria um mosaico formal de um sentimento pungente de desamparo. Retrata as muitas interrogações e questionamentos de um homem HIV positivo, o próprio realizador, Nico Luna, em suas ponderações sobre relacionamentos, preconceito e afetividade e as localiza em amplo movimento, viajando entre fronteiras de países sul americanos. É uma obra jovem, na medida que parece lidar com todas as ideias que lhe correm com uma certa afoiteza, um desespero de se fazer ver e ouvir. Este grito autoafirmativo vem embrenhado de uma postura de enfrentamento que cria no outro seu maior inimigo. Curioso pensar que este é o filme que abre a mostra, uma vez que seu caráter desconstrutivo soa destoante de uma pulsão jovem mais propositiva como visto nos outros trabalhos da sessão. Esse aqui não, esse quer destruir. 

E tudo bem. Os movimentos de contracultura historicamente já demonstraram que este também é um caminho fértil para engendrar uma transformação social. Destruir para criar algo novo, e assim dar os próximos passos em direção a alguma ideia vaga ou propositiva de futuro, sempre se inspirando no que veio antes, mas de olho no que mais lhes importa no presente. O cinema jovem e universitário é uma janela e um espelho. 

Autor

  • Glauber Machado

    Glauber Machado da Silva é graduando em Rádio, TV e Internet pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Excerto do Teatro, guarda algumas experiências na atuação cênica e audiovisual, com destaque para os curta-metragens “O Reflexo” (2019), Não Me Esqueças (2022) e Vento Turvo (2023, em finalização) e o espetáculo “Cancioneiro de Lampião” (2023). A primeira experiência regular da prática de reflexão sobre a linguagem cinematográfica veio com a participação no projeto de extensão “Rádio Facom”, onde roteirizou, co-apresentou e editou o programa sobre cinema “Hollywood Babylon” (2022-2023).

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