Quais são as viagens que queremos viver?, por Pepe Reis

O ser humano ainda não habitou Marte. O mundo não acabou em 2012. A Terceira Guerra Mundial ainda não começou. Será mesmo? O futuro do Universo, por mais claro que seja para alguns, é sempre alvo de especulação no chamado Antropoceno. Difícil seria descrever em poucas palavras os acontecimentos que marcam a presença humana na Terra, afinal os infinitos processos de transformação iniciados por nós desenrolam-se agora, enquanto escrevo este texto. A viagem que vivemos é imprevisível, e, apesar de coletiva, só faz sentido se for abstraída pelo Eu, aquele que deseja, que possui e deixa a sua marca no planeta.

Carcinização, dirigido por Denis Souza, propõe a utilização da animação para arquitetar uma realidade paralela, na qual certas leis da Física não são aplicadas. Nela, poças d’água levam a ondas psicodélicas, caranguejos se comunicam com seres humanos, e estradas se erguem em meio ao céu estrelado. Hoje, nada disso parece inimaginável, afinal o conhecimento técnico propiciou, por meio do mundo virtual, incontáveis viagens de escapismo, muitas delas até mesmo esquecidas e perdidas na nuvem cibernética. Os dados que acessamos armazenam informações sobre quem somos, e, cada vez mais, o tão polêmico Eu expande-se para planos imateriais. Sob tal perspectiva, habitaremos, gradualmente, mais realidades paralelas.

Um dos pontos interessantes a se destacar no filme é o diálogo constante com a ideia de projeto de futuro. O título Carcinização, que remete uma convergência evolutiva na qual um crustáceo evolui para uma forma similar a de um caranguejo, sem compartilhar semelhança anterior com essa espécie, relaciona-se diretamente com a motivação de P1, o protagonista: a vontade de se tornar um caranguejo, mesmo possuindo uma forma humana. Assim como mudar o estilo musical ou trancar a faculdade, o desejo de P1 é apenas uma abstração da juventude, que se desloca pelo mundo em busca de um caminho para si, possível dentro da realidade proposta.

A vontade de abrir mão do corpo em busca de uma nova forma, mais próxima do intangível, é uma ficção comumente atribuída ao projeto de virtualização, que engloba o fenômeno de migração humana para o mundo cibernético. Já antes retratada diversas vezes por meio da ficção científica, tal processo revela inúmeras camadas destrutivas, na medida em que o ser humano perde o controle sobre a tecnologia, entregando-se à ela. 

No entanto, Carcinização em nenhum momento se assemelha a uma distopia. Pelo contrário, percebe-se no curta-metragem uma atmosfera constante de harmonia compartilhada entre os personagens. As cores manifestam-se de forma viva e pulsante, enquanto a trilha musical é devaneante e suave. Os instantes de festa, tanto entre seres humanos quanto entre caranguejos, muito bem representados pela animação, ajudam a exteriorizar a vida coletiva enquanto um elemento indissociável à realidade construída. Assim como em Steven Universo, o afeto permite que o projeto de futuro em Carcinização não seja devastador, como no anime Serial Experiments Lain, por exemplo.

A reviravolta do filme, contudo, é que o tão sonhado projeto de carcinização foi descontinuado, tornando-se inacessível para humanos. Nesse sentido, cabe ao protagonista refletir novamente sobre o seu projeto de futuro e ir em busca de outra viagem que desperte o seu desejo.

Tratando-se de um filme universitário, Carcinização carrega uma potência intrigante, já que o ensino de animação no Brasil é, sem dúvidas, precarizado. Com isso, viagens, brisas, ondas e baratos desse tipo ainda são pouco explorados pela juventude, que muitas vezes consome animações estrangeiras, mas vê-se sem recursos para materializar as realidades que idealizam. Por fim, o questionamento final é sobre como realizar o processo de produção de obras, como Carcinização, com equipes com conhecimento técnico e sem exploração do trabalho.

Autor

  • Pedro Reis Rocha

    Pepe Reis tem 21 anos e usa os pronomes elu, ele e ela. É natural de Ibirité, Minas Gerais, e hoje mora em São Paulo, onde estuda Audiovisual pela USP. Ao longo da vida, construiu uma paixão por histórias, que representam para elu um universo de infinitas possibilidades, afinal o ser humano pode sempre nos surpreender. Depois, descobriu o significado de "arte", e, novamente, se apaixonou. A vontade de fazer cinema nasceu como uma síntese de tudo que fazia sentido para elu, e, desde que me mudou para São Paulo, arriscou-se a descobrir um pouco mais desse meio. A veia contadora de histórias o levou ao roteiro, no qual pode dar voz às loucuras que imagina no dia-a-dia e a narrativas silenciadas historicamente. A universidade abriu portas para lugares que jamais pensou em estar. No primeiro semestre de 2024, realizou um intercâmbio em Macau, onde pôde ter contato com sets de filmagem locais e compreender como se pensa o cinema no outro lado do mundo.

    View all posts

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *