Janelas indiscretas são melhores como memórias guardadas, por Glauber Machado

Glauber Machado sobre As Janelas Me Diziam Que Os Carros Cor De Lembrança Ainda Percorriam as Movimentadas Ruas do Esquecimento

Existem intensas problemáticas dialéticas quando pensamos narrativas autobiográficas, apesar de sua constante presença nas linguagens artísticas representativas. Questões que vão desde a ambiguidade entre realidade e ficção até enfrentamentos éticos da representação do real e da autenticidade deste “eu” posto em evidência. Embora esse posicionamento criativo diante da forma possa oferecer uma rica exploração do indivíduo e de sua relação com o mundo, permitindo uma conexão com pontos de vista únicos, realidades e vivências outras, ela também corre o risco de confundir, manipular e, mesmo, de alienar o espectador.

O documentário ancorado em uma construção narrativa de si, parece permeado de complexidades ainda maiores, uma vez que o substrato do gênero é a realidade. A forma como a subjetividade é tratada e posta em tela pode vir até mesmo a comprometer a integridade do discurso proposto, colocando, assim, o espaço fílmico como terreno complexo onde ética, subjetividade e objetividade se deslocam e dialogam a partir dessa autorrepresentação. 

Surgindo em um contexto de intensa turbulência de lutas sociais, o cinema documental em primeira pessoa parte destas narrativas e perspectivas pessoais de seus realizadores e parece apontar para o cinema, também, como espaço de expressão pessoal. Expressão pessoal que está invariavelmente inserida em contextos sociais e políticos.

Dessa forma, é necessário questionar o papel que a arte cumpre, não apenas em seus pressupostos e proposições formais, mas em termos morais. Michael Foucault e Linda Hutcheon, ainda que partindo de pontos teóricos diversos, em suas análises do poder e verdade e da pós-modernidade, respectivamente, parecem apontar para uma concordância sobre o fato de que a narrativa autobiográfica configura-se e está inserida em contextos de poder. Como construções artificiais, estas narrativas podem engendrar uma manipulação da realidade que se entranha profundamente nas questões éticas que perpassam a forma documental.

“As janelas me diziam que os carros cor de lembrança ainda percorriam as movimentadas ruas do esquecimento”, dirigido por Guilherme Freitas, é um filme que bebe do nascedouro de Jonas Mekas, mas parece não refletir sobre questões presentes em seu cinema. Elabora um exercício formal autoconsciente, é notório, onde até mesmo diretor e amigos debatem sobre o que a obra poderia se propor, conjecturando até mesmo o desligamento total de uma pretensão de universalidade. Chegam, de fato, ao longo de parte de sua duração a operar neste chaveamento dialógico entre o que se está representando e o que é de fato posto em tela. 

Embora demonstre uma grande habilidade de encadeamento narrativo por meio da montagem, como ao conectar uma fala sobre o “esvaziamento do conteúdo e valorização da forma” a cenas em uma casa noturna onde toca “Short Dick Men” (Homem do Pau Pequeno), estabelecendo um paralelismo entre uma música que pode ser lida como de conteúdo grosseiro, mas que se encaixa naquele contexto, ao adentrar nas reminiscências pessoais do realizador, a relação de “pacto autobiográfico” com o espectador se enfraquece. Isso se torna mais evidente ao recorrer ao já comum registro do período pandêmico, sem qualquer pretensão de articular um discurso a partir dessa escolha. Procura imagens que signifiquem algo e insistentemente não encontra coisa alguma.

Existe uma relação de precedente e procedente em Mekas onde a mera replicação de seu estilo não é capaz de transpor valor a qualquer outra obra que beba desta influência, ou qualquer outra, mesmo que o filme em questão seja capaz de construir imagens visualmente interessantes por si só. Encerra, em seus 22 minutos de duração, com luzes fugidias de janelas, captadas por sua câmera tremida, sobrepostas de forma a simular o trajeto por uma estrada, onde só o que se vê são os faróis dos carros em perene movimento. Imagens instigantes que colocam-se diante de um vazio semântico ao final dos créditos, ou talvez apenas diminuam drasticamente seu impacto ao tamanho de seu próprio grupo social.

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