A iniciativa de filmar documentários em ocupações já vem sendo explorada pelo MLB – Movimento de Luta nos Bairros e Favelas há certo tempo, tendo rendido até agora resultados muito potentes como em Conte isso àqueles que dizem que fomos derrotados (2018) e Na missão, com Kadú (2016). Nestes filmes, mesmo quando existe uma postura da ‘mosca na parede’ que observa silenciosa, a presença da câmera parece propor um estar ali, explorando visualidades que se chocam com a maneira como as personagens interagem com o seu espaço. Ambos, de fato, são elaborados a partir de um sentimento de urgência. No primeiro, trazendo personagens que vagam pela escuridão perigosa de um terreno recém ocupado e o segundo explorando as memórias de um falecido camarada em frente ao perigo da violência, sempre acirrada contra coletivos voltados para a disputa territorial.
Entre sonhos e barracos, filmado coletivamente por Arthur Quadra, Carol Alves, Gabriel Pimenta, Giovanna Moraes, Marcelle Won Held, Maria Julia Max, Micaella Matias e Tainá Lima durante um dia na Ocupação Maria do Arraial, em Belo Horizonte, segue um outro caminho, também observável em algumas outras produções do coletivo, aquele de se colocar enquanto um retrato corriqueiro, que capta acontecimentos nada decisivos, mas que ilustram as dinâmicas do grupo. O curta opta por trazer pequenos momentos onde não há algo em jogo, mas sim breves rastros de um cotidiano que preenche o prédio do centro da cidade e dá vida a ele. Isso, porém, a partir de uma câmera que não confronta o que registra, nem busca construir imagens novas, apenas reafirma a intenção de demonstrar o dia-a-dia da ocupação como o de um prédio residencial comum.
Existe sim uma importância nessa abordagem, aquela de tornar visível uma convivência sem os estigmas de um suposto caos da coletividade, muitas vezes explorado para mostrar as problemáticas de uma ocupação para fins de desmobilizar a luta. De qualquer forma, a construção de uma visualidade e uma estrutura tão sóbria parece se apoiar em uma objetividade pouco instigante, que não deixa muitos espaços para contradições, de algo que nos leve para além daquelas imagens. Os vários planos das bandeiras de todos os coletivos vinculados ao PCR quase substituem as cenas em que a dinâmica dos moradores toma protagonismo. Cada pessoa surge cumprindo suas tarefas em um plano isolado próprio ou então repousando em silêncio. Exceto pelo grupo que conversa na sacada, um dos poucos momentos em que flui uma interação viva.
Como obra realizada para exibições em cinedebate internos da ocupação, o filme adquire um aspecto de espelho, que reflete uma percepção de si exteriorizada, que olha para frente para enxergar a si novamente. Seguindo por essa linha, o filme pode muito bem evocar os conflitos do momento que é assistido, abrindo espaço e sendo motor para o debate formulativo da organização. Mas se pensarmos o filme em uma circulação em festivais, como vitrine para a luta por moradia, esta linguagem pode facilmente se acomodar em um “retrato do cotidiano” de uma câmera pretensamente isenta que já começa e termina muito segura do seu efeito. É importante que o cinema possa dar ferramentas para olhares menos lineares. Claro, sem nunca deixarem de lado o caráter científico neste processo. Em um ano de filmes tão propositivos nas formas de refletir as imagens e a coletividade no Festival Metrô, Entre sonhos e barracos acaba se comprometendo com um excesso de autoafirmação que não parece refletir a elaboração conjunta do filme.