A tela do cinema, na sua enormidade, muitas vezes permite que a gente viaje um pouco enquanto assiste algo. Ao se abrir como uma janela para outro mundo, a tela do cinema da “linguagem clássica” oferece a experiência de descobrir realidades parecidas com a nossa, mas com regras muito próprias, situações que são consequências de coisas que vieram antes e vão se estender para outras que virão depois. Nos vemos no meio de um rastro de alguma história, um desejo sendo cumprido, uma vingança sendo feita ou uma missão sendo concluída.
Com um pouco menos de cinco minutos, Água mole, dedo duro, de Pedro Nascimento da UEM, desenrola uma pequena série de ações em uma paisagem sob muito sol. Pouca coisa acontece: a personagem esbaforida desce da sua bicicleta em uma estrada de chão, encontra um copo vazio em cima de uma cadeira e, depois de pousar uma flor no assento, preenche o copo com água que sai do seu dedo. Ao tentar de novo tem certa dificuldade, mas, depois de certa insistência, verte água pelo corpo todo.
A paisagem de plantações no widescreen, que dá certo ar de “cinemão”, é cenário de um jogo insólito minimalista, onde um corpo realiza um feito impossível dentro de uma lógica incomum. Pensar esse corpo como necessitado, como sedento ou até mesmo como excitado depende de como entendemos essa sequência de planos no contexto que apresenta. É um filme que se coloca bem nesse campo de uma indefinição, mesmo que se trate de uma simbologia própria, ela mesma pode ser entendida de diferentes maneiras, pois não parece apresentar uma metáfora ou um paralelo evidente. Ali, até uma mosca que aparece rapidamente sugere um desvio da realidade que esperamos encontrar.
Não à toa pode surgir em debate sobre o filme, por exemplo, a leitura de uma situação erótica que o diretor não havia percebido, mesmo que o filme seja quase todo acompanhado de gemidos da protagonista. Até mesmo o diretor pode trazer a questão do agronegócio a partir das plantações em que o filme se passa, enquanto me passava pela cabeça o filme enquanto um exercício de cinema de produção artesanal que pode muito facilmente substituir o cinema comercial da superprodução. É um filme que se compromete enquanto espetáculo a partir de poucos recursos, usando canudinho pro efeito da água saindo dos dedos e fazendo isso a partir de um cuidado charmoso com a decupagem. O filme é uma jornada grandiosa, onde uma protagonista confronta a natureza, extrapolando as suas leis, e então se afoga no próprio desejo.
De forma parecida, o uso da tela widescreen em Cabeça de Boi, de Lucas Souto, da Universidade Federal do Ceará – UFC, remete ao feito épico espetaculoso, principalmente do faroeste a partir do humor. Satirizando assim, o que se convencionou a chamar de nordestern, os filmes de tema nordestino semelhantes ao western estadunidense, o curta faz de um jogo de sinuca o acerto de contas entre dois antagonistas. O passado desses personagens é contado como relato pelos frequentadores do bar que dá nome ao filme. É a história, o “ouvi dizer”, uma fama que chega antes dos mencionados.
O passado, portanto, é um fio condutor importante na narrativa que se desenvolve ao redor deste jogo. Em certo momento um flashback revela que um dos personagens perdeu seu irmão por uma disputa de terras. Aqui, diferente dos flashbacks mais recorrentes no cinema em curta-metragem, a partir de uma mistura com o tempo presente, esse recurso do “embaralhamento”, Cabeça de Boi o faz da maneira clássica, desfocando a lente em um close do personagem. Esse tipo de abordagem, que usa o que nos é familiar, permite uma espécie de vínculo com a narrativa, criando um pano de fundo não só subjetivo do protagonista, mas também do contexto social daquele cenário.
A situação toda, movida por um sentimento profundo do protagonista, é acompanhada pela comunidade que frequenta o bar, e que não necessariamente se preocupa com o fim daquilo por conta do que está em jogo para os dois competidores, mas sim para as apostas feitas entre eles. Mesmo assim, não existe um distanciamento dos espectadores e os jogadores, ao contrário, eles parecem se integrar em um mesmo nível de importância para o filme, dedicando boa parte de tela para vermos o desenrolar das suas interações. Nos localizamos então em um tempo intensamente situado no presente, acompanhando uma situação chave de um conflito, que é presenciada por esse grupo empenhado em comentar e reagir.
Dentro disso, o filme sabe usar o pano de fundo da sinuca como manifestação desse espetáculo competitivo, o de acompanhar as coisas que acontecem no agora, criando típicas situações do jogo como uma questão narrativa (a bola branca que é encaçapada depois da bola oito!) e filmando tudo isso com um cuidado de continuidade minucioso. Ao fim, o filme se estende do presente para o futuro, sugerindo uma continuação. Curiosamente o pós-crédito parece estar em alta com as comédias, acontecendo igual em Ladeira Abaixo, onde um aviso diz que os personagens voltarão.
Mas se existe uma personagem que poderia facilmente prometer um retorno, é a protagonista de A Agente, de Pedro Miyoshi, da UFMS, exibido na quinta e última sessão. Mais do que um duplo sentido de agente, que vai da agente de saúde para a agente secreta, a personagem que o filme acompanha possui uma coisa em mente apenas: acabar com os mosquitos que transmitem doenças. Sem usar fala alguma, o curta estabelece essa figura a partir de elementos caricatamente simples, são desenhos anti mosquito imprimidos e grudados na parede ou o inseticida em primeiro plano em cima da sua escrivaninha.
Facilitando assim a contextualização, o filme pode se dedicar a um dia de realização da protagonista dentro da sua obsessão particular. Uma pulada de portão a faz entrar em um pátio vulnerável ao foco de dengue e zika vírus e, uma vez lá dentro, ela realiza sua função com muita alegria. A narrativa e o humor do curta queimam lentamente como um repelente em espiral. Aos poucos vai se deixando os momentos espontaneamente desengonçados da protagonista dominarem a tela. Sem buscar muito ir para além daquele momento em que o filme acontece, cria-se um tempo próprio, onde é possível se dedicar a situação com algumas garrafas que insistem em não ficar escoradas, algo que se estende sem pressa por certo tempo.
Esse sentimento de tempo suspenso pressupõe uma leveza. Não há culpa na invasão, ela é feita por motivos que dificilmente não seriam considerados bons, trata-se de uma situação de saúde pública que a protagonista se permite levar às últimas consequências. Neste espaço onde podemos vagar livremente o filme muitas vezes deixa alguns breves segundos de vazio, sem ninguém na tela. É um ritmo que, ainda que dialogue com o humor de esquete visto na internet nos anos 2010, está muito próximo também de um cinema observacional, de acompanhar personagens em seus afazeres, mas sem cair naquele ‘vazio’ completo que alguns filmes parecem buscar para retratar um cotidiano. Aqui, a tarefa ganha um peso não convencional, serve de fuga quieta para a protagonista misteriosa.
Estes três casos que trago aqui representam uma abordagem de uma realidade que, sendo irreal ou corriqueira, são construídos com um rigor muito próprio. Brincam com o fragmento de outro mundo que o cinema narrativo permite, oferecendo ao público um fragmento de interações entre pessoas e seus ecossistemas a partir de alguns gestos. Dois dos filmes com personagens solitárias e um deles com um grupo grande, todos, entretanto, com a recompensa de uma catarse final. A partir desses filmes vemos o uso de uma linguagem clássica como porta voz de narrativas dissonantes, satíricas e enigmáticas, que brincam com expectativas a respeito do mundo já pronto das imagens. Também permitindo que as realidades se estendam para além de si mesmas.