Uma filmagem é uma relação com o mundo: ela capta, reflete e posteriormente pensa relações com esse universo sensível colocado em sua frente. É uma mediação entre ser e ambiente e, dessa forma, é uma extensão do ser para fazer sentido desse espaço para fora dele, uma prótese técnica que permite que a percepção e o contato com todo o restante da existência não se restrinja apenas ao corpo humano. É uma relação, portanto, de ampliação do campo da humanidade, de sua visão, percepção e experiência.
A maneira que essa relação técnica se dá, porém, não é restrita somente ao horizonte técnico. Pensando essas relações, o filósofo Yuk Hui cunha o termo cosmotécnica a partir da concepção que essas próteses técnicas são o meio de campo não apenas para um contato com o mundo a sua volta, mas com dimensões morais e cosmológicas. E, mais importante, como esse mundo e essas dimensões são demarcados culturalmente: a localidade de cada desenvolvimento técnico se conecta a uma forma de ver e viver o mundo específica, única.
A problemática surge, claro, a partir da modernidade e do derramamento do pensamento tecnológico ocidental em relação às práticas e visões de mundo tradicionais, no qual essa localidade costumeiramente se perde em meio a uma visão técnica hegemônica. A câmera cinematográfica vive sempre no limiar dessa relação: se por um lado convenções de uso, narrativas e estilos a colocam no constante risco de padronização de nossa relação com imagens, por outro o instrumento ainda é capaz de ser aberto para os mais diversos usos e possibilidades dentro de contatos com cosmologias diversas.
Essa reflexão fica exposta no filme “Os Sonhos Guiam”, de Natália Tupi, que fechou a segunda sessão da mostra competitiva do 7o Festival Metrô. O curta acompanha Mateus Were, jovem líder Guarani M’bya da Terra Indígena Jaraguá, que apresenta sua atividade de educação na aldeia e sua relação com o universo dos sonhos e, de forma mais central, com seu irmão mais novo falecido. Mateus em diversos momentos coloca o universo cosmológico Guarani em evidência, na própria relação com o mundo onírico, com as músicas e com a tradição.
Ao falar de seu irmão, porém, ele apresenta como ele, ainda criança, tinha grande interesse pelo cinema – e então vemos uma filmagem de arquivo feita por ele. As imagens infantis, feitas numa handycam de resolução mais baixa, contrastam com a beleza da fotografia do curta, no entanto é ali onde o filme se abre para outras formas de relação com a imagem, na certa inocência da imagem tremida que tenta mostrar um outro elemento da aldeia, mas que se concentra mais na própria relação da criança indígena com o equipamento cinematográfico.
Qual forma de relação é possível com essa imagem? Uma pergunta que se estende ao próprio curta de Natália, que questiona como a cosmologia Guarani irá fazer uso de tamanha exuberância de registros de suas rotinas. A cosmotécnica da aldeia não se restringe às práticas religiosas e culturais, mas sim à incorporação dessas tecnologias e desses registros. Assim como o universo cosmológico dá a Mateus a presença de seu irmão falecido por meio do beija-flor, a câmera apresenta a lembrança vívida dele, de suas criações na handycam e de sua evocação na filmagem de Mateus fumando na casa de reza.
O filme nunca assume uma relação sonho-cinema mais direta, mas ainda há uma ligação a ser posta entre como ele molda o universo onírico com a forma de se pensar essa narrativa. Da mesma maneira, “Cambiante”, de Annah Hellena Sobral Carneiro de Souza, é um filme de sonho: sua protagonista acorda e todas as convenções sociais vão por água abaixo. Ketchup na pasta de dente e café no prato raso, sopa tomada de garfo. As alusões mais óbvias a um surrealismo (fora os exemplos acima, menções a Salvador Dali e a Tim Burton surgem abertamente), porém, são diluídas em um filme que parece, sempre, buscar algum outro truque, alguma outra forma de propor essa desconexão: da montagem rápida e manipulada de pinturas colorizadas, até a fotografia de baixa resolução, a animação e a corrupção da imagem em si.
A desconexão acontece dentro de uma dinâmica que pensa a lógica desse sonho, que permite as mais diversas conexões, como a lógica de montagem. Nesse sentido, menções à Tramas do Entardecer, antológico curta experimental norteamericano de 1943, dirigido por Maya Deren, vai além da mera presença de um personagem com espelho no rosto, adentrando à própria lógica de uma decupagem que vê a ideia do corte como abertura para um fluxo que não é de um naturalismo, do mundo como o percebemos, mas buscando a transposição de lógicas outras para a forma do filme – transmutando a lógica cosmotécnica da câmera enquanto um agente racional, de uma “realidade”.
Essa lógica pode ser a do sonho, como é explícita em alguns momentos, mas também é de uma outra maneira de se pensar a figura da protagonista e o espaço a sua volta. Ao sair às ruas, o filme comumente se interessa pelo que há em volta, flores, abelhas – sua protagonista corre de roupão, desorientada por um mundo que parece lhe escapar a mesma medida que existe para provocar seus anseios, mas o filme escapa pelas beiradas pensando esse mundo por outros lados. O caráter lúdico do curta, então, não é só do surrealismo, mas de viver esses espaços múltiplos na experiência do cinema.
Ainda sobre um caráter de brincadeira no qual é possível pensar outras realidades, “A Cachoeira dos Pássaros”, de Thiago Pombo, trabalha a animação stop motion de recorte de papel para contar a história de passarinhos que lutam contra a venda de sua habitação por outro passarinho. O próprio formato do stop motion propõe uma leitura que é, por um lado, ligada a esse caráter lúdico, da beleza e inocência do espaço dos pássaros, mas, por outro, apresenta também a simples possibilidade de se desenvolver um cinema de animação dentro do campo universitário. Talvez até por essa dimensão dupla, de uma estética pessoal e de uma posição política que possibilita a realização, que a trama do filme seja justamente de um embate entre os próprios passarinhos que carregam um processo de antropomorfização.
Novamente a cosmotécnica: não só a dos passarinhos que vivem sua relação com a terra, a natureza, e que no embate com um outro ganancioso têm essa visão de mundo confrontada, mas também a das escolhas estilísticas do diretor, de como contar essa história e se expressar. No maior momento de embate entre os animais, os passarinhos brigam entre si e transformam-se em uma grande bolha que mistura a cor dos papéis da animação de cada personagem. A junção de ambos os lados – os terranos e o capitalista – está ali em sua expressão máxima, em uma escolha que perpassa o lúdico, a animação e o político: as convulsões que eram necessárias para a manutenção daquela beleza primeira.
Essa relação que media o mundo pelo olhar da inocência está também em “Página Três”, de João Pedro Diniz, que conta a história de uma família de 3 mulheres negras, a mãe e duas filhas, após a mais nova ficar de castigo, sem celular por ter brigado na escola. O curta acompanha a rotina da família com um olhar para sua vida doméstica e rotineira com uma fotografia luminosa, que parece lavar os rostos das personagens, criando um clima que varia entre o nostálgico e o exagerado. Aos poucos, a criança de castigo reclama do seu tédio, aos poucos conhecemos mais detalhes da vida e da relação entre as três personagens e, por fim, aos poucos somos abertos à possibilidade de um contato maior entre mãe e filha – baseado, portanto, nessa ideia de uma rotina que é capaz de apresentar toda uma existência.
Entre essas questões, o filme usa alguns planos detalhes de desenhos que, conforme vão aparecendo com mais frequência, parece brincar com alguma relação pressuposta entre o espectador e o livro “O Pequeno Príncipe”, como quem espera que o reconhecimento da obra e a relação com esta se coloque para quem assiste o filme antes mesmo dela aparecer para as personagens. O livro irá aparecer tardiamente, após uma singela cena em que a mãe, buscando distrair a filha, abre uma caixa esquecida de pertences do pai das meninas. Entre revistas de sacanagem, Milton Nascimento e fitas VHS, está lá o pequeno livro francês.
O cuidado com a relação da família é evidente no roteiro, mesmo que em alguns momentos pareça muito preso a um texto demasiado consciente de criar uma narrativa para a história. Porém o que chama atenção no filme, por fim, é como, ao finalmente chegarmos ao encontro entre mãe, filha e livro, Diniz opta por omitir a narração da mãe para a filha, que vemos no mudo. Em vez disso, a concretização daquela relação de proximidade que finalmente se cria acontece ao som de Milton Nascimento, uma camada que parece afastar do momento o significado que o livro poderia ter para o filme (ou até mesmo para as personagens, já que a filha dorme ao fim do plano), trazendo, sim, uma acentuação da relação familiar, sentimental e pedagógica, que vem da camada histórica de resgatar a caixa do pai ausente.
Nasce também de relações familiares o documentário “Pisca-Pisca”, espirituosa aventura juvenil dirigido a mais de dez mãos por moradores da cidade de Ferreira Gomes, no Amapá, que possui, em seu território, 7 mil habitantes e 3 usinas hidrelétricas. Buscando denunciar a condição da energia da cidade, os jovens entrevistam diversos moradores indignados com a situação, que envolve contas caríssimas, um recente apagão prolongado e o corrente escoamento da energia gerada no município para outras regiões do país. O método dos jovens chama a atenção por, em nenhum momento, sequer dialogar com possíveis limitações da boa conduta de manuais de documentário.
Vemos os bastidores de diversas entrevistas, muitas que começam com “oi, tia” ou até mesmo “estamos aqui com meu pai”, e que demonstram de forma transparente os objetivos e vontades dos diretores. Assim como eles vão de uma abordagem a outra, usando montagens musicais, filmagens de drone, reencenações, cenas do dia a dia da cidade, etc. A montagem, realizada por Lara Beck, educadora do projeto em que o curta foi realizado, destaca essas várias possibilidades que o grupo viu para o filme e cria um ritmo que é ao mesmo tempo plural, múltiplo, mas direto ao ponto em relação a sua temática.
A grande realização do documentário é, portanto, como essa abertura cria novos laços entre os moradores a partir da indignação com a situação da luz na cidade e como esses se cristalizam por meio das imagens que vemos. Não só ao registrar as relações sentimentais que surgem nas entrevistas, na emoção de um pai ao falar do passado para o filho, mas também no cinema como brincadeira jovem: lindas imagens debaixo da água, o rio que reflete e transfigura o real que eles vivem, a possibilidade de filmar a família, o vizinho, o professor. E, assim, filmar a si mesmo também.
Por fim, ficamos com “Última Parada”, de Daniella Shizuko, Marina Sartoreli, PH Ribas e Sal Galarça, que também parte da indignação, deles com a situação do transporte público de Curitiba, para remodelar o real dos terminais de ônibus e os veículos da cidade em uma obra que busca que colocar esses espaços em convulsão – ao mesmo tempo que documenta seus problemas. As imagens claras e diretas desses espaços públicos se chocam entre si buscando mostrar a precariedade do serviço prestado à população, com tom de denúncia para as baratas em veículos, as estações quebradas e os problemas aparentes.
O que mais chama atenção é o trabalho sonoro que mescla falas do prefeito Rafael Greca, completamente alheias à realidade da multidão que circula pelo transporte público da cidade e que se mostra presente no filme, áudios de propagandas da prefeitura e as edições feitas com o sistema sonoro de avisos aos passageiros. O trabalho de mescla e repetição surge da captação direta desses sons corriqueiros, mas que transformam o que servia ao burocrático aviso em um elemento de desorientação. Assim como no trabalho com as imagens, é possível ver, na retirada do puro registro desses espaços, uma possibilidade de expor diretamente e colocar em movimento as denúncias do sistema de transporte de Curitiba.
Longe de se resumirem a uma só temática ou forma de representação, os filmes presentes nessa sessão ainda sim conversam dentro da proposta de se relacionar com um mundo e de reinventá-lo a partir das suas realizações fílmicas. O conceito de cosmotécnica não se encerra na relação técnica que existe entre a humanidade e suas diversas cosmologias originárias e tradicionais, mas envolve toda maneira em que o universo técnico, moderno e tradicional, conversa com a forma que nos relacionamos e criamos mundos, novos e velhos, resistentes e sentimentais.