Parte do que nos fascina na arte é o encontro com o que nos escapa. Não só na tentativa, ilusória, de uma escapatória de viver outras vidas, de nos levar para fora de nossa realidade enquanto espectadores, mas de experienciar outras formas de sentir, ver, viver. Essa realidade vale tanto para o espectador, o apreciador da arte, quanto para o artista, para aquele que tenta ir além de si para criar uma existência autônoma, além do seu corpo, mente e alma, que passará a existir como obra de arte. Ir além de si propõe, também, ir além de todos os pressupostos que envolvem ser humano – pensar fora das convenções de toda a nossa existência na terra.
Se o filósofo francês Jean-François Lyotard irá falar da arte como pertencente ao campo do inumano, é justamente dentro dessa proposta de ir além do que convencionou-se, institucionalizou-se como humanidade. Como na problemática linguística, se por um lado nossa língua pode servir como mero comunicacional, temos no universo da poética uma outra possibilidade de reorganização e ressignificação desse, e de outros, mundos. No cinema, pensamos até mesmo em um espelhamento desses termos: podemos debater uma existência sintática para suas formas, a chamada “linguagem cinematográfica”, mas também são inúmeros os debates sobre suas capacidades poéticas, não demarcadas, uniformizadas, em outros cinemas – seja ele chamado de experimental, poético, não-narrativo, etc.
“Raiva-Coração”, de Sarah Cafiero, habita esses espaços de diversas maneiras. O filme segue uma montagem livre a partir de uma narração que reconta sonhos de maneira contínua e sem muitos nexos narrativos. Em alguns momentos o curta opta por ilustrar os sonhos, mas durante seus 5 minutos comumente segue um fluxo próprio de imagens – quase que à parte da ideia de uma narração. O próprio trabalho com o áudio propõe um grande nível de ininteligibilidade e confusão, com a sobreposição dessas falas sobre sonhos e uma insistente trilha de ruídos eletrônicos esporádicos, nele a própria lógica do onírico, que mesmo que divergente da racionalidade ainda é uma lógica, vai para o campo do inapreensível e do incompreendido.
As imagens que Cafiero usa giram em torno de espaços, paisagens e objetos caseiros, que se sobrepõem e pensam essas filmagens de maneira a propor praticamente um não-pensamento, uma não-lógica. Há uma centralidade nessa figura da diretora, que em alguns planos aparece como personagem, mas a maneira que ela apresenta o seu entorno – de discretos planos de sua vida privada, seu cachorro, sua casa, o céu até uma iluminada paisagem noturna -, nunca leva o filme à ideia de um obra sobre si, mas que parte de sua presença para esconder a si mesma, para pensar a sua própria visão por outro viés.
Que acaba sendo um viés… Desconhecido, perdido, que parece escapar ao filme e a quem assiste. Tal qual os sonhos recontados por confusas falas que parecem mais advindos de audios de WhatsApp, não há nenhuma linha a ser seguida, nenhum pensamento a ser aprofundado. A sessão em que o filme foi exibido na mostra competitiva do 7o Festival Metrô apresentava outros filmes que pensavam essa produção de imagens de si, que de certa forma quase apresentavam uma nostalgia da época em que a presença de uma câmera de vídeo na vida das pessoas era dedicada à imagens que eram igualmente triviais, cenas rotineiras, e especiais, em que todos paravam para posar em frente àquele objeto externo.
Cafiero usa imagens como essas que carregam uma imensa trivialidade, com quase uma não-intencionalidade em alguns casos, mas que na montagem parecem sempre apontar para fora dessa. O uso do plano de seu cachorro, que aparece em sobreposição na metade final do curta, parece exemplar nesse sentido: não apenas pelo foco na boca animal, que na estranheza do enquadramento retira a presença animal do universo pet e o coloca ligado à certa animalidade, ao inumano de Lyotard, mas também sobre como a natureza caseira daquela filmagem, corriqueira e intensa, aponta para fora da casa. Mas o que há fora de casa? Não sabemos – as sobreposições não chegam a nenhuma síntese, nenhum resultado, porque talvez não seja esse o caráter que essa poética busca. Nesse inacabado, porém, o cachorro ainda respira deitado.