Se esse rio fosse meu: Pepe Reis sobre Pisca-Pisca e A Cachoeira dos Pássaros

 O capital modifica as paisagens, apropria os espaços e destrói, gradualmente, a vida que outrora habitava límpida e radiante naquele local. Pisca-Pisca e A Cachoeira dos Pássaros são dois curta-metragens que fazem parte da mostra competitiva Se Essa Rua Fosse Minha, cujo nome logo evoca duas ideias a princípio dissonantes: posse e familiaridade.

“Se essa rua / Se essa rua fosse minha / Eu mandava / Eu mandava ladrilhar / Com pedrinhas / Com pedrinhas de brilhantes / Para o meu / Para o meu amor passar.”

Essa cantiga  propõe um olhar sobre a rua, um elemento coletivo que, assim como um rio, transporta ao longo de seu comprimento o afeto de quem com ele em algum momento se relacionou. As pedrinhas de brilhantes são matéria. O amor, nem tanto. Contudo, qualquer alteração em uma paisagem inevitavelmente espiritualiza-se em sentimentos dos mais diversos. O amor é cultivado. O ódio é incitado. Não há sentimento que não se relacione em certa medida com a matéria.

Pisca-Pisca e A Cachoeira dos Pássaros propõem universos narrativos nos quais o rio é o elemento principal que norteia a comunidade retratada. No primeiro, o rio Araguari, pertencente ao estado do Amapá, é central para o município de Ferreira Gomes, afetado por uma crise energética incompatível com a produção hidrelétrica local. A visualidade do rio é construída a partir da metade do filme, por meio da fala de um dos entrevistados – que, curiosamente, é pai de um dos realizadores. A grandeza das águas tornaria-se facilmente banal caso não houvesse um cuidado narrativo de apresentar a matéria – o rio – em paralelo com o momento de emoção vivido pelo personagem. Nesse momento, o rio transborda sobre a tela, da maneira mais cinematográfica possível, por meio de planos debaixo da água, pores-do-sol deslumbrantes e imagens de drone. O plano no qual o filho realizador abraça o pai finaliza uma sequência de imagens no qual a natureza ocupa integralmente o espaço.

Já em A Cachoeira dos Pássaros, as águas fazem-se presente desde o início. Os ciclos de vida e morte dos personagens estabelecem-se à beira de um rio, que é o elemento central de um planeta fictício habitado por aves. A história de amor dos protagonistas se dá nesse local sagrado, e, quando há o falecimento de um deles, o retorno às origens é o movimento natural. É verdade, porém, que tal história não é tão clara pela similaridade visual dos pássaros. As penas vermelhas poderiam ser introduzidas ainda na cena do velório, e o relacionamento amoroso surge de maneira repentina, sem que houvesse a devida construção do afeto entre os personagens. Nesse sentido, a narrativa parece truncada, de modo que passado, presente e futuro não estejam tão bem definidos.

Em ambos os filmes, a privatização surge como um elemento que provoca uma fissura no modo de vida originário da região, de modo a gerar um enfrentamento semelhante: a revolta. A tentativa de privatização liderada pela ave amarela em A Cachoeira dos Pássaros pode ser comparada a um estágio embrionário do processo destrutivo que ocasionou o apagão no município de Ferreira Gomes, o aumento exorbitante no valor da conta de luz paga pelos moradores e o desenraizamento vivido pela comunidade dependente da pesca. 

A solução encontrada pelos pássaros é o embate físico, já pelos realizadores de Pisca-Pisca é o cinema. O grande diferencial deste, inclusive, é abraçar o ideal de coletividade enquanto estratégia de enfrentamento da maneira mais metalinguística possível. São 12 co-diretores que compartilham a autoria do filme; os seus parentes são entrevistados; há sempre uma preocupação em registrar o processo completo de contato entre a equipe e os entrevistados. “Como foi sua manhã?” é uma pergunta tão pertinente para o curta-metragem quanto interrogar as considerações acerca da crise elétrica na cidade. Afinal, a vida coletiva, seja no universo de Pisca-Pisca ou de A Cachoeira dos Pássaros, também se perpetua por meio de diálogos, encontros e histórias de amor. 

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